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‘Infinita Plasticidade’

Jacob Burckhardt — um historiador da arte, de nacionalidade suiça, que viveu durante o século XIX — lamentou-se uma vez escrevendo que “o mundo está submerso em falso ceticismo”, acrescentando logo depois “já que do verdadeiro ceticismo nunca pode haver demasiado”.

Não é fácil interpretar isto, mas vale a pena tentar.

“Falso ceticismo” é aqui — creio eu — aquela desconfiança rebarbativa, viciosa, cujo grande objetivo é apenas o de interromper a novidade. Reconhece-se naquelas pessoas que respondem “porque não” ou “isso não vai acontecer” ainda antes de terem tido tempo para pensar naquilo que ouviram.

O falso ceticismo é, se quiserem, uma espécie de desconfiança insincera. Por que recorrem as pessoas a ela? Vejo duas razões.

A primeira é que mudar de grelha de leitura dá trabalho. Todos nós, ao longo da vida, vamos adquirindo experiência e opiniões mas também, com elas, preconceitos, manhas e hábitos de pensamento. A certo ponto não sabemos distinguir umas das outras. Servimo-nos de tudo isso para interpretar e tentar prever as coisas que vão acontecendo, mas com o andar do tempo, o esforço que daria adaptar a nossa grelha de leitura não ultrapassa a simples e confortável teimosia de ir negando as novas realidades.

A segunda razão é que errar compensa, desde que seja errar a favor do preconceito da maioria. Tal como a maioria não quererá reconhecer o seu erro, o nosso erro será também provavelmente esquecido no meio do erro da multidão. Isto beneficia quem quiser posar como pessimista profissional, ganhando de duas formas: se acertar, acertou; se falhar ninguém pensa nisso.

Essas duas razões fazem com que o “falso ceticismo” se torne, simplesmente, no senso comum.

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A segunda parte é também subtil. O que é aquele verdadeiro ceticismo de que Burckhardt fala, dizendo que nunca é demasiado? Não basta dizer que ele é uma desconfiança sincera por oposição à anterior, insincera. Na verdade é que, com o hábito e o passar do tempo, até nós temos dificuldade em saber quando somos sinceros e insinceros, e em distinguir quando a nossa desconfiança é fundamentada ou simplesmente fruto do despeito e da arrogância intelectual.

Acho que se entende o que Burckhardt queria dizer com “verdadeiro ceticismo” regressando à primeira metade da sua frase. É precisamente porque o mundo está submerso em “falso ceticismo” que o “verdadeiro ceticismo” nunca chega. O verdadeiro cético é assim alguém que tenta chegar à realidade (o mundo) submersa sob o falso ceticismo (o senso comum). A tarefa é complicada porque o falso ceticismo é, simplesmente, parte da realidade também… mas o cético profundo tem por obrigação desconfiar do ceticismo instantâneo.

Um exemplo. Na passada sexta-feira, no Cairo, cristãos que estavam presentes entre os manifestantes da Praça Tahrir fizeram um cordão humano para proteger os muçulmanos durante as orações. Este domingo, durante uma missa pelos mortos do movimento, os muçulmanos retribuíram o gesto e protegeram os seus irmãos cristãos.

Um cético verdadeiro deveria ter conseguido a coragem de dizer que isto é possível, contra o senso comum. Um cético verdadeiro deveria manter os olhos abertos e estar sempre preparado para mais uma surpresa — até, por vezes, das boas — de uma sociedade que é sempre moldável e alterável. Hegel — um filósofo de que conheço pouco ou nada — tinha uma expressão que também serve para descrever esta maravilhosa característica da civilização humana: “infinita plasticidade”.

Publicado por Rui Tavares em Jornal Público no dia 7 de Fevereiro de 2011