Diria o falecido senador Moynihan que Miguel Sousa Tavares tem direito à sua opinião — mas não tem direito a factos só para ele.
Miguel Sousa Tavares é um homem muito corajoso, como todos sabemos — porque ele não se cansa de no-lo repetir. Estranhei por isso vê-lo utilizar, na sua última crónica do Expresso, o bom velho truque do toca-e-foge.
Consiste essa manha em aludir a alguém, não identificando, o que permite inventar o que o outro escreveu e depois escapar a uma réplica. É assim que me vejo transformado em “um deputado do Bloco de Esquerda” que “escrevia no Público” que “os segredos diplomáticos servem para subtrair aos povos o seu direito à informação”. E, continua, “seria ridículo, se fosse inocente” — e que, não sendo inocente, “é hipócrita”. Seria, seria, seria — se fosse o que eu escrevi.
Ora, no meu texto fui cuidadoso em distinguir entre “segredos justificados e/ou necessários” (listando até alguns casos clássicos, como a posição de tropas em tempo de guerra, a identificação de fontes, ou pormenores sobre vítimas ou testemunhas de crimes) de uma “cultura de secretismo” crescente nos últimos anos. Confundir ambos serve apenas propósitos demagógicos.
Recapitulemos — fora de fofocas fúteis — aquilo que de realmente importante temos aprendido com a wikileaks, somente nos últimos dias: 1. a petrolífera Shell diz ter infiltrado todos os ministérios do governo Nigeriano; 2. a farmacêutica Pfizer, após terem morrido onze crianças que tinham sido sujeitas a seus testes de medicamentos em África, tentou sujar o nome do procurador que investigava esse caso; 3. em Portugal, um presidente do BCP ter-se-á oferecido para espiar os possíveis clientes do banco no Irão (o próprio nega).
E mais uma — esta parece menor mas, acreditem, não é — um dos telegramas sugere-me que o gabinete de um juiz francês chamado Jean-Louis Bruguière estava infiltrado.
Nenhumas das coisas que listei acima faz parte dos casos clássicos sobre os quais é preciso, e moralmente justificado, guardar segredo.
Escreve Miguel Sousa Tavares que a “wikileaks era o passo seguinte desta filosofia de que vale tudo, nada é segredo, nada é reservado, tudo é devido, tudo é interesse público, tudo é liberdade de informação”.
Pois bem, em poucas linhas um leitor de Miguel Sousa Tavares teria sido enganado várias vezes.
Quem for à página da wikileaks, verá que até agora foram publicados pouco mais de mil telegramas, ou seja, menos de 0,5% do total. A demora explica-se porque são equipas de cinco dos mais prestigiados jornais mundiais que publicam em primeiro lugar os telegramas, depois de lhes darem um tratamento editorial criterioso. E — ao contrário de “nada ser reservado” — várias informações sensíveis aparecem suprimidas, tanto nos jornais como na wikileaks. Não será infalível nem perfeito, mas não é o “vale-tudo”.
É por isso que eu não sei o nome — assinalado apenas por um xxxxxx — do possível informante no gabinete do juiz Bruguière.
E por que é isto importante? Porque o juiz Bruguière era a personalidade europeia que nos deveria dar informação fidedigna à Comissão, Parlamento e Conselho Europeu sobre — nem mais nem menos — transferência de dados para os EUA. E o seu relatório — absurdamente secreto, mas que eu pude ler e do qual não posso falar aos cidadãos que represento — foi usado por Bruxelas para branquear o que se passava em Washington. Vê, caro Miguel Sousa Tavares, por que é grave e tem consequências esta cultura de secretismo? E vê como, apesar de tudo e ao contrário do que sugere, o segredo foi usado pela wikileaks, justificadamente, para proteger a identidade de uma fonte?
Tal como nem tudo é liberdade de informação — e eu concordo — nem tudo é liberdade de opinião. Diria o falecido senador Moynihan que Miguel Sousa Tavares tem direito à sua opinião — mas não tem direito a factos só para ele.