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A política pós-presidenciais e em tempo de pandemia

Este texto, da autoria de Henrique Sousa, serviu de introdução ao debate do Conselho Geral da Associação Fórum Manifesto de 29 de janeiro de 2021.

Permitam-me duas observações prévias à introdução deste debate que a Direcção da Manifesto me convidou a fazer:

Uma, para saudar o testemunho luminoso da “senhora Maria”, da nossa amiga Isabel do Carmo, sobre a sua experiência de dez dias no hospital de Santa Maria. São testemunhos assim que nos dão forças para resistir e esperança para esta longa e dura caminhada. Recebi hoje muitas manifestações de apreço doutros amigos com quem partilhei e que também divulgaram o texto da Isabel. Bem hajas, querida Isabel. Outra, para saudar comovidamente a aprovação na AR da lei da despenalização da morte assistida, longamente construída de modo cuidado e responsável. Não é ainda o fim do caminho. Mais obstáculos haverá que terão de ser vencidos. Mas é já uma conquista histórica que se inscreve na conquista do direito e da liberdade de viver e morrer com dignidade. Quero por isso saudar os deputados que votaram a lei e homenagear e lembrar o papel pioneiro e decisivo do nosso saudoso amigo João Semedo e de Laura Ferreira dos Santos, fundadora do movimento “Direito a Morrer com Dignidade”, que já partiram. Este é um combate da cidadania que me diz pessoalmente muito e um acontecimento que quero aqui celebrar convosco.

E agora vamos ao nosso debate político

Não vou aqui fazer uma análise pessoal desenvolvida destas eleições presidenciais e do seu resultado político, nem desenvolver o meu escrutínio político das políticas de combate à pandemia, nem sequer fundamentar opiniões e propostas para o futuro ou comentar as propostas já apresentadas. Isso fica para o debate colectivo. Mas no que direi, também não posso ignorar quem sou nem o que penso.

Tenho apenas o modesto propósito de sugerir um enquadramento e um sentido para o debate, em conformidade com o tema escolhido – A política pós-presidenciais e em tempo de pandemia. Será certamente contaminado por pontos de vista pessoais, mas procurarei que seja um chão comum de questionamentos e interrogações para a nossa discussão. E mais voltado para o que importa fazer e propor do que para o que aconteceu. Sendo que vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, nem deixar de tirar lições para o futuro. Gostaria por isso de me concentrar, neste início de conversa, mais na empreitada de buscar as perguntas certas como método para o debate colectivo das respostas necessárias.

Nós, a política e a pandemia

Não vou começar pelas presidenciais, mas quero falar primeiro desta tragédia maior que é a pandemia, porque é indispensável reflectir sobre como estamos a enfrentá-la, como podemos vencê-la e qual o lugar da política e das políticas neste combate. Afinal, começar por aqui é a ordem natural das coisas e das preocupações da grande maioria das pessoas.

Tivemos já uma acesa e informada troca de opiniões e partilha de informações na mailing list da Manifesto. Estamos no pior momento da pandemia desde há quase onze meses e temos pela frente pelo menos vários meses de enorme dureza sanitária, além de uma gravíssima crise social e económica.

A intervenção de ontem do Presidente, em que provavelmente nenhum de nós votou, creio que teve o registo político institucional sóbrio, rigoroso e necessário quanto ao rumo a seguir. Por mim, dou-lhe esse crédito. Tenho, como outros, críticas acumuladas à gestão do combate à pandemia pelo governo e pelo presidente nestes onze meses, designadamente na área que acompanho mais de perto, o trabalho e a segurança social. Mas quando criticamos contradições, erros e falhas, previsões erradas, promessas incumpridas, de um governo exausto, do presidente e das instituições, não podemos nunca ignorar aquilo que às vezes parece esquecido na discussão incendiária das redes sociais. Ninguém, cá e lá fora, estava preparado ou tinha recursos para isto. Todos temos aprendido, por tentativa e erro. E temos, sempre, que dar o benefício de acreditar que eles, os titulares do poder, humanos como nós, mesmo quando nos indignam e exasperam, também estão a tentar fazer e a tentar lutar. Num país pobre, com recursos escassos e em que o SNS todos os dias faz milagres indo mais além.

Saibamos colocar-nos, nisto como em tudo, no lugar dos outros, pelo menos para procurar um chão comum num combate que é de todos. E todos sabemos que a resistência do Estado Social, e do SNS, fragilizado e depauperado por tantos anos de políticas de desinvestimento, continua a constituir a primeira linha da nossa esperança de saída desta crise, de evitar a falência sanitária e social e de derrotar os que querem usar o vírus como instrumento divisivo, de acesso ao poder e semente de caos e de ataque à democracia e aos serviços públicos. O que nos convoca neste tempo tão exigente para dois questionamentos que vos proponho:

1º – Como preservar o sentido de pertença à comunidade política para garantir a coesão, a mobilização, a convergência de forças e a responsabilidade social essenciais à vitória sobre este vírus sem dissolver divergências, críticas e alternativas? Como estar do lado das soluções, da convergência de esforços e de vontades necessária para vencer este vírus, sem suspender o escrutínio das políticas e das medidas, preservando o debate político das soluções e sem passarmos a ser parte do problema, como acontece com as declarações incendiárias e negativistas dos bastonários das ordens dos médicos e dos enfermeiros e de tantos outros? E qual pode ser o nosso contributo na sociedade civil, na cidadania activa, para este combate?

2º – Como lutar para que os média, sobretudo os canais televisivos, sejam mais parte da solução e menos parte do problema, cumpram o seu dever de informar e de escrutínio das medidas, mas sem se tornarem, como está a acontecer, com honradas excepções, nos arautos e transmissores obsessivos e invasivos, 24 horas por dia, das tragédias de todos os dias? E há tanto para valorizar positivamente no espaço mediático quanto ao que é feito e inventado em tantas áreas, na cultura, na ciência, no trabalho e na sociedade, cá e lá fora, porque apesar de tudo o mundo move-se e é preciso equilibrar a visão colectiva do mundo em que vivemos com os feitos humanos, para não ficarmos reféns de uma negatividade sombria que nos empurra para todos os pesadelos.

Presidenciais: e agora, que fazer?

Para lá do consolo que cada um de nós encontre em aspectos particulares das eleições (e eu tenho o consolo dos melhores resultados para a esquerda do “meu” distrito do Porto), não vale certamente a pena perdermo-nos nesses exercícios pessoais. Os factos fundamentais desta eleição não parecem oferecer grandes dúvidas quaisquer que sejam depois as análises, as responsabilidades e as culpas que cada um queira desenvolver:

Primeiro facto – O facto positivo para a democracia da abstenção eleitoral, a qual ficou abaixo das previsões e afirmou uma vontade de participação cívica expressiva neste tempo de pandemia e de confinamento. No Continente ficou pelos 54,5%, elevada sem dúvida, mas não tanto como o esperado e que só o grande aumento do universo eleitoral da emigração sem correspondência em votos projectou para uma abstenção global de cerca de 60%.

Segundo facto – A vitória esmagadora do actual Presidente, um candidato, segundo o seu próprio discurso, ideologicamente proveniente de uma direita democrática, um candidato catch all que conseguiu colher os votos da maioria do eleitorado do PSD, do PS e foi buscar votos também aos eleitorados das esquerdas, reduzindo a expressão eleitoral das suas três candidaturas. Uma vitória que não é a vitória da direita, como logo fizeram questão de proclamar Rio e Chicão, tentando apropriar-se do resultado.

Terceiro facto – O sucesso da extrema-direita com meio milhão de votos, o segundo lugar em dois terços dos concelhos do país e a recolha transversal de votos em todo o lado, nas zonas urbanas como nas zonas rurais. Indo buscar grossa fatia aos eleitores do PSD e do CDS-PP, mobilizando uma extrema-direita antes escondida, indo buscar votos à abstenção, mas também atraindo um segmento de voto das classes populares, incluindo de trabalhadores e conseguindo polarizar uma parte do ressentimento potenciado pela actual crise. Se é evidentemente excessivo dizer, como fez Rui Rio na sua desastrosa intervenção na noite eleitoral, em que quis aproveitar a onda para legitimar o seu relacionamento com o Chega, que o voto dos eleitores comunistas se deslocou para Ventura, também é preciso analisar com cuidado o universo contraditório, social e político dos votantes em Ventura, e não ignorar que tudo indica que na transversalidade do seu voto cabem também antigos eleitores à esquerda.

Quarto facto – A derrota clara e inequívoca das esquerdas, que nenhum discurso auto congratulatório e justificativo com o empenhamento das candidaturas e das campanhas permite disfarçar. Marisa teve o pior resultado alguma vez obtido por um candidato bloquista, com excepção de Fernando Rosas, que teve 3% em 2001. João Ferreira teve um resultado semelhante em número de votos e em percentagem ao pior resultado de um candidato comunista (Edgar Silva, em 2016). As duas candidaturas juntas reuniram apenas dois terços da votação de Ventura.

Dito isto, é evidentemente errado projectar os resultados das presidenciais em eleições de natureza diferente como as legislativas, o que é aliás comprovado nos resultados das duas mais recentes sondagens da Universidade Católica, antes e durante o acto eleitoral, acerca da intenção de voto nos partidos. É igualmente questionável querer relacionar directamente a votação das duas candidaturas com o comportamento, aliás divergente, dos respectivos partidos na votação do último Orçamento de Estado. Mas já é legítimo suscitar a interrogação se BE e PCP, ao terem tomado decisões sobre candidaturas numa lógica semelhante às eleições presidenciais anteriores, ou seja, como campo de afirmação política dos seus projectos através de candidaturas do seu espaço político, tiveram na devida conta a grande novidade destas eleições que alterou a sua circunstância, potenciada pelo contexto da pandemia e da crise: a entrada na sala de um elefante que alterou todo o cenário eleitoral.

Apenas Ana Gomes conseguiu com a sua candidatura independente, pela magra diferença de um ponto percentual, e apesar dos erros da sua campanha e do seu afunilamento para o interior do PS que prejudicaram o alargamento da sua base de apoio, alcançar o segundo lugar no pódio presencial, assim conquistando a pequena, mas importante consolação simbólica de barrar o caminho a essa aspiração de Ventura. Devemos à generosidade da sua candidatura a pequena satisfação de a esquerda ter alcançado o que chamo de “terminação” na lotaria eleitoral, para que o quadro político emergente das eleições não fosse ainda mais preocupante.  Para isso, Ana Gomes concentrou o voto útil de bastantes, como sucedeu comigo, que valorizaram a necessidade política de evitar in extremis o risco político do segundo lugar de Ventura. Um segundo lugar de Ana Gomes cujo serviço à democracia, se esgotou, e ainda bem, no acto das eleições.

Quinto facto – Uma vitória táctica do PS de António Costa, que lançou a candidatura de Marcelo na Autoeuropa e desistiu de ir a jogo, preferindo investir na permanência de uma coligação com a direita dos interesses e com o representante na Presidência de uma direita que se reclama de moderada e social. Investimento que considera necessário à sua estratégia de recentramento político, de condicionamento dos partidos à sua esquerda e de ataque específico ao BE, com quem disputa parte do eleitorado socialista. Estratégia que tem vindo a executar desde o Congresso socialista de 2018 e, mais acentuadamente, desde o fim político da “geringonça”.

É todavia uma vitória de Pirro e um jogo perigoso que o PS não pode celebrar seriamente, fundada numa linha calculista e oportunista de navegação à vista, de uso da crise e da pandemia para condicionar os outros actores políticos e de recusa de acordos duradouros à esquerda que dêem apoio estável e sólido a uma política democrática de ataque à crise. A escolha política de António Costa alargou, com o seu apoio à recandidatura do actual presidente, também o espaço à direita para a candidatura de Ventura. O PS é o principal responsável pelo facto de, pela quarta vez consecutiva, o centro-esquerda e as esquerdas não serem capazes de convergir e apresentar candidatos que disputem a vitória e não sirvam apenas para marcação de territórios. Vamos a caminho de vinte anos assim. Dá que pensar. As esquerdas vão continuar a desistir de disputar a vitória, que exige convergência, nas próximas eleições presidenciais?

Os trabalhos de Sísifo das esquerdas: como rolar de novo a pedra montanha acima?

Recomeçam agora, em circunstâncias políticas piores, os trabalhos de Sísifo das esquerdas e de quantos querem juntar forças para que desta crise não resulte uma sociedade ainda mais desigual, fracturada e divisiva, mas uma sociedade democrática e decente, que valorize o trabalho e proteja os mais frágeis. Uma pedra difícil de rolar montanha acima.

Não há boas respostas, em política como na ciência, sem formularmos as perguntas certas. Aqui fica uma tentativa pessoal de identificar algumas questões ou perguntas para o debate que espero façam sentido e cuja ordem é relativamente arbitrária:

1ª – Vai o PS, os partidos à sua esquerda, e a cidadania política nesta área, conformar-se com a hegemonia política da direita na PR, que vai a caminho de 20 anos, sendo que este será o último mandato do actual presidente, sem ousar lutar e construir alternativas e quando para a futura corrida já se perfilam, mais uma vez, candidatos fortes à direita?

2ª – E, reforçando uma questão já colocada sobre a pandemia, como vão as esquerdas preservar a sua autonomia estratégica e o debate das alternativas políticas futuras e ao mesmo tempo empenhar-se no esforço de convergência e diálogo com o Governo e o PS, neste tempo de resistência colectiva ao vírus que nos empurra para uma certa “suspensão da política”?

3ª – No processo necessário de construção programática de políticas e alternativas ao actual estado de coisas e para o processo de superação da crise económica e social, como vão as esquerdas incorporar outra tragédia menos visível (a emergência climática) que faz silenciosamente o seu caminho, convocando-nos para uma profunda mudança dos modos de vida e de produção que se choca com as lógicas económicas ainda dominantes no pensamento à esquerda e que exige respostas no domínio do trabalho e do emprego que protejam direitos e vidas?

4ª – Como vai o mundo do trabalho organizado fortalecer laços de solidariedade, de organização e a acção colectiva em tempos de acentuada individualização e precarização das relações de trabalho e de agravamento das desigualdades, de que o teletrabalho ou as plataformas digitais são apenas algumas das expressões e enfrentar os já evidentes riscos de penetração de uma extrema-direita com um discurso socialmente divisivo, demagógico e confrontacional entre trababalhadores?

5ª – Como preservar e fortalecer à esquerda a proeminência da luta de classes, da questão social e do combate pela igualdade como questão central unificadora dos trabalhadores e da cidadania no combate político e na convergência de muitas causas, recusando a tentação da sua secundarização na diversidade de causas legítimas ou da criação de muros identitários?

6ª – Como enfrentar e combater a extrema-direita, sem lhe fazer o jogo nos média, nas redes sociais, no discurso político, sem abandonar à sua influência o ressentimento social e os que se sentem abandonados e desorientados? E como travar este combate sem cair na tentação fácil de “morder o anzol”,  sem entrar em lógicas proibicionistas que lhe favorecem a vitimização e sem reduzir a confrontação social e política à oposição fascismo/antifascismo ou racismo/anti-racismo, lógicas que empurrariam para fora do debate a maioria das pessoas e não serviriam eficazmente a causa do isolamento e da derrota necessários das ideias fascizantes e do racismo em Portugal?

7ª – Finalmente, porque a política não é monopólio da disputa partidária, e faz falta a mobilização de uma cidadania mais activa, que fazer e como fazer, para despertar e mobilizar mais energias, mais convergências, mais esperanças e propósitos comuns à esquerda?

Estas são as perguntas que neste momento coloco a mim próprio e que desejava partilhar convosco. Obrigado pela vossa paciência. Agora, que venha o debate.

Henrique Sousa

29 de janeiro de 2021