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Talvez o século XXI tenha verdadeiramente começado a 11 de setembro de 2001, isto é, cerca de seiscentos dias depois da data convencionada. Aceitar esta forma de contar os tempos, ao arrepio do calendário oficial, permite pelo menos atribuir sentido a um conjunto de eventos e processos que marcam o início do novo século e que, de certa forma, fixam uma rutura com perspetivas mais luminosas com que era encarado, no final dos anos noventa.
Visto a partir de hoje, aquele horrendo desfazer literal das torres gémeas parece de facto ser o início de um tempo de profunda transformação em vários planos. De estruturas e dimensões que dávamos como mais ou menos adquiridas e que acumulam desde então sinais de erosão, sem que se saiba hoje ao certo em que sentido e com que significado. Curiosamente, aliás, o 11 de setembro e a posterior invasão do Iraque, com a consequente desestabilização do médio oriente e o enfraquecimento do multilateralismo na política internacional, constituem também o primeiro momento de contacto com a mentira enquanto instrumento de ação política (armas de destruição massiva) e que hoje se manifesta, por exemplo, no fenómeno das redes sociais e das fake news, a par da ascensão, mais recente, dos populismos de direita e extrema-direita.
Some-se a isto o avanço do neoliberalismo nas suas múltiplas formas, e a sua crescente importância enquanto mecanismo de organização do mundo e das sociedades, e percebe-se também a destabilização causada nos mais diversos domínios, nomeadamente no decurso da crise financeira de 2007/08, com a consequente adoção de políticas de austeridade um pouco por toda a parte, permitindo compreender o ambiente de deslaçamento, erosão e retrocesso que marca, em termos políticos, económicos, sociais e culturais, este início do século XXI.
Chamando à capa uma famosa frase do Manifesto do Partido Comunista, associada ao poder de extensão da lógica capitalista a todas as esferas da vida e à sua capacidade para reconfigurar as mais diversas formas de organização,1 o dossier do número 3 da Manifesto procura refletir sobre a atual crise das estruturas e formas de intermediação. Inicia-se com a entrevista de Hugo Mendes a Wolfgang Streeck, procurando abordar de seguida a crise da representação política, com textos de Pedro Adão e Silva e Filipe Nunes (crise da social-democracia), Isabel do Carmo (movimento dos coletes amarelos em França) e uma reflexão sobre a situação político-partidária atual em Itália (com o texto de Giovanni Allegretti e Cristiano Gianolla). Prossegue com a análise do significado da financeirização da economia enquanto processo de transformação do capitalismo e da própria democracia (Alexandre Abreu), e com duas outras reflexões temáticas. Uma na esfera do mundo do trabalho (com os artigos de Henrique de Sousa sobre os novos movimentos sindicais e de António Brandão Moniz sobre os desafios da automação) e outra sobre a crise dos media e os desafios que a mesma coloca ao nível do espaço democrático da informação (por Sandra Monteiro). Sendo múltiplas as dimensões em que se reflete esta crise e erosão de estruturas e mecanismos que dávamos como adquiridos, o próximo número da revista prosseguirá esta reflexão, abordando outras dimensões relevantes para compreender as transformações que estamos a atravessar.
Entre os textos da “Atualidade”, e dado o contexto de eleições para o Parlamento Europeu, a questão da Europa assume particular destaque, com artigos de Francisco Louçã, Ricard Bellera e Viriato Soromenho Marques. E é também a Europa, mas não só, que está em questão no ensaio de Daniel Oliveira sobre o Brexit. O “Contraditório” desta edição foca-se no debate em torno dos benefícios terapêuticos e do uso recreativo da canábis, com a assinatura de Manuela Silva e Lucas Manarte, José Aranda da Silva e Moisés Ferreira. Na secção da “Memória”, recordamos – sempre com aquela emoção…– um artigo de Miguel Portas, de 2005, sobre os primeiros vinte anos de construção europeia, mas que continua em muitos aspetos atual, e a revisitação da Crise Académica de 1969 por Celso Cruzeiro, para além do texto de homenagem de João Afonso a Manuel Graça Dias, que recentemente nos deixou.
Completam este número os portfólios de fotografias de João M Almeida e o “Laboratório de Comunidades” de Francisco Dias e Pedro Sequeira, bem como, na secção “Estórias”, o texto de Alice Brito e as homenagens de Pilar del Rio e Fernando Gómez Aguilera a César Manrique, no centenário da sua morte. Dois contributos que, sendo de homenagem ao multifacetado artista, constituem igualmente uma homenagem ao seu território, a ilha de Lanzarote.
O Conselho Editorial
1 «Tudo o que é sólido se dissolve no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade a sua posição social de partida e as suas relações recíprocas» (Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista).