Para além da religião e da língua, uma coisa se repete nas paisagens do Cairo, de Damasco, de Amã ou de Sanaa: retratos de ditadores. No Cairo, a fotografia de Mubarak olha-nos em cada canto, sendo certo que, se nada acontecesse, no lugar dela seria posta a do seu filho Gamal. Em Amã, é a fotografia do Rei Abdullah que ocupa o espaço público. Em Sanaa, o bigode de Saleh está em todas as esquinas. Em Damasco, Bashar al-Assad divide a iconografia da ditadura com o pai que governava antes dele e com o falecido irmão que deveria ter ficado com o seu lugar. Mas os símbolos populares são outros: no Iémen, quando lá estive, em 2005, era a cara de Yassin, líder religioso do Hamas abatido pelos israelitas; na Síria, quando lá estive, durante os bombardeamentos israelitas ao Líbano em 2006, eram as bandeiras amarelas do Hezbollah; no Egito é a Irmandade Muçulmana.
Não se trata de fanatismo religioso. Perante ditaduras incompetentes e cleptómanas, os islamistas parecem ser os únicos que se preocupam com o povo. O suficiente para lhe dar pão, conforto espiritual e alguma autoestima. Salva-nos o facto de, apesar de tudo, os movimentos laicos que tomaram o poder durante as independências terem apostado num sistema educativo público. E das redes sociais, que servem para arregimentar militantes para os grupos islamistas, também servirem para conectar os jovens árabes com o resto do mundo. Na Síria, na Jordânia, na Tunísia e no Egito há oposições democráticas que acreditam numa terceira via. Graças a elas, é possível que estejamos a assistir ao fim do período pós-colonial na região sem que isso resulte em teocracias.
Foram a crise económica e a repressão, e não a questão religiosa ou a relação com o Ocidente, que levaram a estas revoltas. E elas unem oposição laica e religiosa. No Egito, não foi a Irmandade Muçulmana que liderou os protestos. Até foi surpreendida por eles. Mas tem o apoio de cerca de um quinto dos egípcios e parece estar disposta a entrar no jogo democrático. Sem ela, não há democracia. Podemos aprender com o passado recente. Com a Turquia, onde o AKP está no poder e até tem garantido alguma progressão democrática. Com o Líbano, onde o Hezbollah integra uma coligação governamental. Com a Palestina, onde, pelo contrário, o isolamento internacional do Hamas levou a uma guerra civil.
O Egito não será um Irão. Poderá vir a ser uma democracia musculada, uma democracia plena ou uma ditadura renovada. Serão os militares a determinar a evolução provável. E, caso os generais mudem de campo, os partidos estão dispostos a aceitar a sua tutela, mesmo que transitória. Claro que é difícil para os Estados Unidos e para a Europa abrirem mão do controlo de uma região com a importância estratégica que esta tem. Claro que Governo israelita sabe que alguém que dependa do voto dos egípcios não poderá continuar a cumprir o papel de guarda prisional de Gaza. Mas se o desejo ocidental de limitar a democracia árabe voltar a imperar, tentando afastar parte das forças políticas deste processo, tudo pode correr mal. Se, pelo contrário, percebermos que há mundo para lá dos nossos medos, talvez haja esperança para estes povos. Os árabes estão a fazer a sua parte. Será que o Ocidente conseguirá, desta vez, estar à altura?
Publicado no Jornal Expresso no dia 5 de Fevereiro de 2011