Miguel, disseste aqui há tempos que “o meu único objetivo de vida é modestíssimo: não faço a menor ideia se aquilo que eu defendo vai fazer caminho ou não. O socialismo ou o comunismo não são nenhum destino. Não está nada escrito. Mas há uma coisa que sei: ao chegar ao fim da vida, quero poder olhar para trás e dizer: terei feito algumas asneiras, mas no conjunto posso partir, lá para onde for, com tranquilidade.”
Tenho andado a pensar nisto desde terça feira. Tens razão: não está nada escrito e não há destino traçado para os nossos caminhos. Como dizia um poeta que tu e eu gostamos, “Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos. Chegamos? Não chegamos? Partimos. Vamos. Somos.” A única coisa que nos proibimos a nós mesmos é o cinismo, é ou não? Foi isso que aprendi de ti: saborear o risco do erro nos ensaios para mudar a vida que fazemos de mão dada com os impuros é sempre melhor que a quietude de quem não se arrisca senão a calcular a bissectriz das certezas frias próprias das seitas que, de tão puras se quererem, desistem de mudar. Há demasiadas vidas sofridas, de pessoas concretas, marcadas pela discriminação, pela exclusão, pela desumanidade. E diante delas, é-nos exigido que nos ponhamos ao caminho, olhos postos na decência para todos. E na liberdade, sempre na liberdade.
Sim, Miguel, o que tu e eu queremos para nós e para todos é a vida em abundância. Aquela que se aprende com o tesouro que é a diversidade do mundo, não pelas fotografias da National Geographic ou pelas notícias da CNN mas indo lá, a Gaza, a Lampedusa, a Beirute sentir o cheiro das ruas, ouvir a sabedoria das gentes e contrapor a densidade da História às receitas padronizadas do pronto-a-impor político e económico.
É por causa desse culto da ignorância que este Abril é de inverno e chove desapiedadamente nas nossas vidas. Aqui, em Atenas, em Madrid, em Bruxelas. A coisa tem nomes vários. É ofensiva do capital, pois claro. É ofensiva do liberalismo, óbvio. É ofensiva anti-europeia, disseste-nos tu que amavas a Europa como espaço de combate pela afirmação dos direitos e da justiça na economia em escala transnacional. Eu digo-te: é ofensiva da tristeza. Da formatação de modos de vida acabrunhados e cinzentos, em que a competição é lei e o cuidado com os outros é remetido das políticas para o campo ocasional dos bons sentimentos. Acho que tu estarias de acordo comigo nisto: foi contra essa tristeza funda e institucionalizada que lutaste desde puto. Nas revoluções quotidianas que fazias no Passos Manuel, em Económicas ou onde fosse, era isso que te motivava, eu sei. Chamavas-lhe outras coisas mas, disseste-mo tu sem mo dizeres, era uma luta contra a tristeza que sentias necessidade de não parar nunca de fazer. Isso é o nosso Abril e tu foste daqueles raros cuja vida se resume na mais densa das frases: “25 de Abril sempre”.
Dos teus muitos traços eu guardo o teu sorriso, com aqueles olhos pequeninos e semi-cerrados. Nos momentos mais tensos da luta política, tu desarmavas-me mais com esse sorriso do que com a inteligência fina com que reinventavas discursos e teses. Aprendi muito contigo, Miguel. Talvez o mais importante tenha sido viver a política com amor mas sempre com prazer. Porque é missão mas não pode ser sacrifício. O teu sorriso tinha a marca dessa sabedoria.
Disseste a uma amiga nossa “a minha vida valeu a pena, no sentido em que foi interessante para outros.” Foi. Muito. Eu agradeço-te isso. E mando-te um abraço com carinho.
José Manuel Pureza in Diário de Notícias 27/04/2012