Intervenção do José Reis na sessão pública “Por uma Governação Decente”
Nos últimos anos ficámos a saber até onde pode ir a sanha punitiva da direita e a sua obsessão pelo desequilíbrio das relações sociais em desfavor do trabalho, do bem-estar, dos direitos sociais e dos adquiridos constitucionais no nosso país. Percebemos como o empobrecimento sem limites, a perda de dignidade sem contemplações, a desqualificação das pessoas e das suas vidas, a sujeição desamparada aos interesses dos poderosos podem ser compulsivamente levados por diante, ainda por cima com uma retórica de imperativo incontornável, de caminho único que não se pode discutir.
Nestes tempos obscuros, houve no entanto uma esquerda que soube compreender que isto tudo é insuportável mas que não basta denunciá-lo. Uma esquerda que soube contribuir para definir uma base programática anti-austeridade que é, aliás, uma forma alternativa de governo. Esta esquerda rigorosa, de forte consciência programática, tratou dos temas irrecusáveis de uma governação de esquerda. E compreendeu que quem é capaz de definir princípios de ação é também quem tem de ter a coragem de se envolver em compromissos que permitam dar-lhe realização. De facto, ao contrário de tradições bem conhecidas, que erguem bandeiras programáticas para fazer delas armas de arremesso contra outros que têm de estar no mesmo campo – insistindo assim na bem conhecida prática de cavar trincheiras, em vez de construir pontes – nesta esquerda de que falo quer-se ser, ao mesmo tempo, crítico, alternativo, construtivo, ativo e parte de soluções. É a urgência na recusa do insuportável estado do país que nos determina.
Não é a hora para fazer balanços, mas tudo o que ocorreu no quadro do CDA, aquilo que impulsionou o LIVRE a constituir-se em partido, o que inquietou o fórum Manifesto, o que levou a que o debate sobre a dívida passasse de assunto proibido a questão incontornável do nosso debate público, para só dar estes exemplos, mostra bem quanto o debate à esquerda foi essencial, positivo e renovador. A esquerda que hoje temos não é, pois, a de há 3 ou quatro anos. É uma esquerda dotada de muito mais capacidade para influenciar, agir, empurrar soluções e governar. É uma esquerda de consciência e de ação porque é preciso recuperar a dignidade deste país.
São dois, portanto, os pilares em que assenta o calibre desta esquerda: a consciência programática a que aludi e um empenho genuíno na formação de compromissos de governação nos quais sejam centrais um programa anti-austeridade e um claro confronto com os mecanismos de sujeição que aprofundarão a insuportável situação de pobreza, desqualificação e injustiça em que Portugal se encontra. O que caracteriza esta esquerda, o que tem de a caracterizar permanentemente, é o facto de estes dois aspetos serem ambos verdade. É verdadeira a razão programática que a mobilizou e que é capaz de apresentar, pois ela, sendo uma exigência do estado de necessidade em que nos encontramos, não é uma rebuscada elaboração destinada a ser arremessada contra os que são necessários para que haja alternativa, de modo a que eles a recusem. Mais ainda, ela não servirá para ser refinada até à exaustão e até atingir a perfeição que só os devotos vêem, cumprindo assim a sua finalidade de arma de arremesso. E é igualmente verdadeiro o empenho num compromisso para que a esquerda seja maioritária e governe como esquerda. Quer isto dizer que não se elabora uma base programática para a esquecer no momento de discutir com quem se quer firmar um compromisso. E, do mesmo modo, quer isto dizer que a proposta de compromisso não é apenas uma flor de retórica destinada a dar espaço para que esta esquerda se autocontemple.
É, contudo, claro que manter as duas coisas verdadeiras e juntas é uma tarefa muito difícil. Realizá-la exige um terceiro ponto. Exige um acordo mínimo, que não traia os fundamentos programáticos que esta esquerda construiu e constitua a chave para viabilizar o compromisso. Acho que esse acordo não é difícil de enunciar: na forma de governar, uma aposta clara na democracia, na deliberação política e não na submissão tecnocrática, na luta contra a corrupção e na frontal oposição aos clientelismos partidários a favor de medíocres e desqualificados; na economia, uma séria opção pelo emprego, pelo desenvolvimento e pela qualificação da pessoas e das atividades, contra um país de emigração, baixos salários e trabalho desqualificado (a competitividade dos desgraçados que o governo tem imposto a este país); na política, o respeito pela ordem constitucional em todas as suas dimensões, incluindo obviamente as decisões do Tribunal Constitucional; na sociedade, a luta contra as desigualdades e a recusa da desproteção como modelo de funcionamento social; na Europa, uma luta sem quartel contra o definhamento das instituições europeias, a regulação assimétrica que cavou a profunda clivagem entre centros financeiros e periferias empobrecidas, contra uma incapacidade gritante que não foi capaz de resolver em 2008 uma crise que um genuíno modelo social europeu seria capaz de vencer, mas que a deliberada opção pela punição dos que foram considerados mal comportados transformou numa vertigem recessiva incontrolável; na redefinição da nossa abalada trajetória coletiva, uma discussão sobre a dívida que nos sufoca e a criação de espaço orçamental para que haja capacidade de ação pública a favor da economia – de uma economia qualificada – e da coesão social.
Sabemos hoje o que significa ser-se governado por uma clique reacionária (no exato significado que os eruditos deram à palavra), obcecada por servir a ideologia da direita dos dias de hoje, que já nem conservadora é, para ser apenas serventuária dos interesses dos poderosos. Sabemos também como o país tem sido parasitado por burguesias velhas ou novas sem pudor nem lei, que vilipendia os recursos nacionais, hipoteca o país e se serve despudoradamente do que é público.
O país não aguenta mais punição sobre as pessoas, o trabalho, os direitos sociais. Não aguenta uma política degradada. Não aguenta também a camisa de onzes varas em que foi metido pela regulação liberal dos que desviaram a Europa para um caminho que a dilui numa lógica competitiva mundial dominada pela valorização financeira à custa de tudo e de todos. A esquerda não pode sentar-se a observar, contente consigo mesma mas inútil. Muito menos pode dedicar-se a autodestruir-se. Falámos de convergência desde que isso foi necessário. Falámos de princípios de ação claros ao mesmo tempo que nos empenhámos e estabelecê-los de forma aberta. Continuamos a falar de ação de todos sem excluir ninguém e através de uma carta de princípios útil.
A esquerda de que falo é a que constituiu a sua identidade através do percurso que achei que podia descrever do modo que aqui usei. É a que não exclui o Bloco de Esquerda nem o PCP – e até lhes exige que venham para o campo das soluções – mas também não quer ficar parada, à espera, condicionada pelas suas recusas ou desconfianças. É a que reconhece no PS o partido da esquerda obviamente necessário a uma maioria que governe como esquerda. Mas é a que também sabe como o PS é atravessado por tensões cuja resolução tanto pode ser a chave para que o país seja governado com dignidade como pode ser um passo altamente danoso para a esquerda, para o país, para o próprio PS. É, enfim, a esquerda que não quer isolar ninguém à esquerda mas quer energia. É a que quer discutir com todos estes para que passe a existir o que hoje não está garantido. Acha que é por tudo isto que aqui estamos hoje.