Intervenção do Alberto Melo na sessão pública “Por uma Governação Decente”, em Tavira
Nem vale a pena perder aqui tempo a descrever a situação política, económica e social que vivemos em Portugal e que – provocada pelo domínio descontrolado do capital financeiro globalizado – afecta aliás todo o planeta; nuns países, de forma activa e noutros ainda numa maneira larvar. Não é excesso de dramatismo reconhecer que está em risco o futuro das sociedades democráticas e tendencialmente coesas que conhecemos, como estão em perigo os avanços civilizacionais e ainda o delicado equilíbrio ecológico da Biosfera.
Que fazer? Perguntam os milhares, os milhões, que querem recusar a irracionalidade e a injustiça de um sistema que privilegia 1% da população mundial e adopta crescentemente medidas e políticas anti-humanas, anti-vida, em nome dos “supremos desígnios” da acumulação de lucros e de capital e daqueles que o detêm e controlam.
Perante as lições da História, que está pejada de revoluções traídas, já não acredito numa via de conquista do poder para depois transformar o mundo. E não acredito, portanto, numa estratégia leninista de partido de vanguarda, onde se encontram os que conhecem e interpretam os interesses reais do povo, um partido que terá de impor a linha correcta a toda a sociedade, sem olhar a meios nem a valores éticos, e se necessário for contra a vontade do próprio povo.
Vejo a revolução nos resultados – tanto imediatos como longínquos – de uma aposta consciente e abrangente na transformação social, através de movimentos capazes de criar, dentro da própria sociedade que se recusa, espaços, tempos e esferas de acção que prefigurem já esboços de um mundo diferente: são rebeldias em movimento. Em vez do processo outrora defendido de se conquistar o poder para com ele fazer a revolução, parece-me hoje mais oportuno e apropriado promover a revolução aqui e agora, num quotidiano em transformação e em dinâmicas que geram elas próprias poder. Assim, a subversão, o processo de ir minando diariamente os pilares do sistema imposto pelo capital, implantando ao mesmo tempo os gérmens de uma sociedade diferente, ganhará primazia sobre a revolução, como transformação súbita.
John Holloway, no seu livro “Mudar o mundo sem tomar o poder”, sublinha que as estruturas políticas actuais foram moldadas na luta entre o capital e o trabalho assalariado, luta que conduziu ao movimento sindical e aos partidos social-democratas. No entanto, ele recorda-nos que o trabalho assalariado não é a negação do capital, mas sim o seu complemento, quer como factor de produção quer como forma de injectar dinheiro na economia. Recusar uma sociedade dominada pelo capital passa pois pela recusa do trabalho assalariado, do trabalho alienado e, em última instância, pelo papel dominante do dinheiro na economia e na sociedade.
Nos últimos 30 anos, digamos, têm surgido inúmeros movimentos que afirmam a possibilidade de emancipar o trabalho humano do capital, de produzir e de consumir de outra maneira; produzindo e consumindo, não em função da geração de lucro, mas de acordo com as necessidades materiais e imateriais de todas as pessoas. Ao escaparem assim à lógica do lucro, estas experiências estão a abrir frestas no sistema capitalista.
É evidente que quem pretende recusar uma sociedade submetida à ditadura totalitária da finança vive numa situação profundamente contraditória, pois entretanto precisa de vender a sua força de trabalho para sobreviver. E esta contradição dissemina-se à escala planetária: a longo prazo, não há futuro para a Humanidade dentro do capitalismo. Porém, a curto e médio prazo, não parece haver solução para a sociedade e para cada uma das pessoas fora do capitalismo… O que sucederia se amanhã se fechassem completamente as “torneiras do financiamento” para a economia portuguesa?
Há que reconhecer que não temos força suficiente para afrontar e destruir o capitalismo, e que até seria perigoso viver a sua derrocada súbita. Contudo, acredito que temos a força suficiente para ir criando as tais frestas no sistema, através de processos de afirmação de uma cidadania activa, de dinâmicas solidárias de revitalização de territórios e de inclusão de grupos marginalizados, de relações socioeconómicas não monetizadas e não mercantilistas, e que podemos ganhar a força suficiente para as aperfeiçoar, para as consolidar, para as multiplicar e para as interrelacionar em redes.
Acredito, portanto, numa Política que é feita na base, no território e no dia-a-dia. Uma Política de resistência contra a ocupação das nossa vidas e das nossas sociedades pelos donos do dinheiro. Porque resistir é criar espaços de afirmação de um mundo diferente, espaços de melhoria da vida pessoal e cultural, como vias de desenvolvimento social, de expressão cultural e de concretização e aprofundamento da democracia. Espaços em que seja possível viver em pleno acordo com os nossos valores e anseios.
É nestes espaços, nestas práticas, nestas frestas no sistema de dominação que podemos descobrir, de uma forma directa e concreta, que um outro mundo é possível, visando sempre melhorias imediatas, mas sem esquecer que o objectivo final é a transformação global.
Nestes movimentos, a estratégia será de atingir uma situação de deliberação, produção e consumo solidários em que se possa finalmente dispensar o capital financeiro e os seus impactos destruidores e desumanizantes.
Não creio que esta estratégia possa ser arquitectada e implementada como política pública, conduzida por um qualquer governo, seja ele do “Podemos” ou do “Syriza”. Por outro lado, contudo, parece-me essencial que os movimentos e espaços de construção de um mundo alternativo não esqueçam nem desprezem a esfera política.
Para isso, é necessário ganhar constantemente um maior peso social, através de um enorme esforço de organização interna e de negociação permanente com os partidos políticos mais abertos à experimentação social e económica. Embora a perspectiva não seja a de conquistar o poder político, a estratégia adoptada deverá conduzir a uma conquista permanente de poder social, tanto nas esferas locais como a uma escala global. Sempre com os olhos nas estrelas da Utopia, mas com os pés bem assentes na terra e as mãos enterradas na massa…