Os autores [dos atentados] “são a face terrível do imenso mal-estar que invade o mundo contemporâneo. E sem se ir às causas não haverá como escapar ao ciclo da barbárie”. Texto de Miguel Portas, publicado em Setembro de 2001, após os atentados e que foi incluído no seu livro “E o resto é paisagem” publicado em 2002, e que republicamos.
“Estuporados. Assim estamos, vendo e revendo as imagens. Como foi possível? Foi. Com absoluta precisão militar, convicção e audácia, os símbolos da capital do Império foram atingidos. Não pode nem deve existir um só grama de satisfação, mesmo a mais íntima e indizível. A elevação da barbárie a obra de génio não altera a sua natureza.
Do mesmo modo que o mais fulminante dos genocídios modernos, a bomba de Hiroshima, não encontrou justificação no fim do segundo conflito mundial.
O que aconteceu foi um acto «político» ou uma operação para lá da «política» tal qual ela existe? Foi uma escalada na espiral dessa imensa fractura entre o «mundo ocidental» e o «mundo islâmico» ou, pelo contrário, a antecipação de um novo tempo neste tempo? Convém respirar fundo, contar 1, 2, 3 e raciocinar.
O genocídio não foi cometido por nenhuma das organizações político-militares palestinianas, nem mesmo o Hamas. Para todas, a guerra é o prosseguimento da política por meios militares. Desviar o alvo para o coração da América só alarga a margem de manobra dos tanques israelitas nos territórios da Autoridade Palestiniana.
Líbia e Iraque também não foram. Nenhum dos seus líderes ignoraria o preço da retaliação. Afaste-se portanto a hipótese de um «acto de guerra» e concentremo-nos sobre a possibilidade de um terror fora dos padrões conhecidos. Tenha sido ou não, esta possibilidade é, desde anteontem, admissível para o futuro.
Ao contrário do que sustentam os idiotas que governam os e a Grã-Bretanha – e por extensão o planeta – os autores não são, simplesmente as «trevas» ou o «mal absoluto». Nem os «cães raivosos» de que falava, na Televisão, um popular candidato a idiota. Antes fossem. Antes isto fosse um filme americano, daqueles da guerra-fria e seus sucedâneos anti-terroristas. Acontece que a realidade ultrapassou a mais criativa das ficções. Reflectir e acertar no modo de actuar e por isso urgente e a minha hipótese e’ simples: mais do que o «mal do mundo», os autores – sejam eles Bin Laden, os Talibans, para-militares norte-americanos ou qualquer objecto novo nos universos do terror – são a face terrível do imenso mal-estar que invade o mundo contemporâneo. E sem se ir às causas não haverá como escapar ao ciclo da barbárie.
Compreender não é aceitar nem desculpar. E criar as condições para se acertar.
Admitamos que a tragédia de 1 1 de Setembro encontra na fractura entre Ocidente e Islão a sua causa próxima e no «passanço» a sua convicção. Deixemos de lado o mergulho nos tempos da guerra fria, o papel de Bin Laden no Iémen e depois no Afeganistão. Ou como os aprendizes de feiticeiro da CIA o suportaram e estenderam a boa vontade aos talibans. Ou como a ditadura que impuseram no Afeganistão é seguramente a mais teocrática do planeta e das mais implicadas no tráfico de drogas e armas. Deixemos as mil histórias da História e concentremo-nos no fundamentalismo, o que é estrutural e durável. Para lá dos protagonistas.
Por cá a ideia sobre ele é a de uma imensa irracionalidade. Por cá.
Porque por lá a irracionalidade é uma desesperada busca de sentido num mundo que deixou de fazer sentido.
Ao contrário do que se julga, a globalização não criou apenas novos mercados mundiais, derrubando fronteiras económicas. Esta e a dimensão espacial do fenómeno, à qual corresponde um sistema opaco de poder global onde os milhares de quadros financeiros assassinados nas torres do World Trade Center mandavam bem mais do que uma imensidão de governos democraticamente eleitos. A singularidade desta específica globalização mora na capacidade que revelou, em poucas décadas, de fundir em cada território os tempos passados e os futuros num só tempo – o presente.
O choque civilizacional da operação-tempo e’ incalculável. Todas as certezas passadas, todos os ritmos de vida e poder tradicionais, e até os territórios em que as diferentes comunidades e culturas (con)viviam, foram submetidas a uma violentíssima revolução, intensiva e instantânea pelos padrões do tempo histórico. O terceiro e quarto mundos estão a ser forçados a realizar em 30 ou 40 anos transformações que na Europa levaram séculos e sofrimentos imensos.
No mundo islâmico este processo ocorre sob os escombros de uma civilização outrora esplendorosa. O pior não é, por aqui, o abate dos mercados locais. O pior é que a globalização impôs uma nova mercadoria – um modo de vida – e expropria todos os dias o planeta dos seus diferentes Tempos e Modos de existência. Este novo capitalismo, ao apropriar-se dos tempos do mundo abriu a pior das caixas de pandora, a do desespero. Os passados de glória e o fanatismo religioso são o refúgio dessa imensa perda de poder imaterial, o da identidade.
Ê esta fractura que explica o drama da felicidade dos palestinianos no momento em que receberam a notícia do ataque. Serão eles «cães raivosos»? Não, são homens e mulheres sem lugar neste mundo e sem nada a perder. Homens e mulheres em guerra contra uma ordem que lhes nega o direito a serem, o direito a terem Tempo. Só espanta como o fundamentalismo não ganhou ainda mais adeptos num mundo que encontra na irracionalidade a sua derradeira racionalidade.
Não sei quem deu mais este passo no caminho da barbárie. Só sei que a resposta dos EUA – as guerras das estrelas e as defesas estratosféricas – são inúteis à luz da tragédia de 11 de Setembro. Só sei que a unipolaridade político-militar não conseguiu substituir com vantagem o equilíbrio do terror. E sei que um sistema de defesa colectivo, partilhado e verificável, só fará sentido no contexto de um acordo mínimo entre o Norte e o Sul do planeta para mínimos planetários de justiça social. Se não existir destino para o Sul, o 11 de Setembro entrará na História em vez de ter ficado para a História”.
Texto retirado de www.esquerda.net