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Um adeus sentido e combatente

Hesitei um pedaço antes de escrever algumas linhas sobre o desaparecimento triste e prematuro do Miguel Portas. Por diversos motivos. Desde logo, porque muitas outras pessoas, mais próximas dele, mais e melhor conhecedoras da sua jornada de vida, escreveram de maneira informada sobre episódios, dificuldades, alegrias e projetos partilhados. Fizeram-no, em diversos casos, de forma muito sábia, justa, comovida e magnífica. Jamais o poderia ou saberia eu fazer com idênticos atributos. Hesitei depois porque falei com o Miguel apenas uma meia dúzia de vezes desde que o conheci, tardiamente, no ano 2000. O Bloco de Esquerda nascera há pouco e na altura sentia-me suficientemente perto para participar como orador numa iniciativa pública. Recordo que sendo o penúltimo a falar me vi interrompido pela chegada de uma equipa de televisão com pouco tempo para gravar o discurso principal, da responsabilidade do próprio Miguel. Fiquei, claro, um tanto irritado com a situação, mas horas depois, já no comboio, recebi um telefonema caloroso e gentil, explicando detalhadamente o sucedido e pedindo um milhão de desculpas. Gesto definidor de um modo de agir raro no universo, tantas vezes brutal e cheio de prioridades trocadas, do ativismo profissional de todos os quadrantes. Mas hesitei ainda porque não queria, nem quero, servir-me de um acontecimento tão infeliz para travar o meu próprio combate político. Não posso, no entanto, deixar de recordar, uma vez que nestas horas tem permanecido omisso nos obituários, a luta do Miguel que conheci contra o sectarismo de todos os matizes e pela ampliação da crítica e da autocrítica dentro da «esquerda da esquerda». Opção difícil pela qual se bateu, mesmo até ao final do caminho, com perseverança e equilíbrio, por considerá-la a única forma de somar forças e ideais para o combate, cada vez mais urgente, cada vez mais imprescindível, por um país melhor e por um mundo mais justo. E do novelo de tantas hesitações resultou este acanhado post, que não passa de um adeus sentido e combatente.

Rui Bebiano, publicado em aterceiranoite.org

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Isto irá

Há quinze dias a crónica não saiu. Não fui capaz de a escrever. Eu tinha sofrido uma grande perda e não quis receber uma avalanche de mensagens. Recebi apenas algumas. Uma delas era do Miguel Portas: “internado em Antuérpia”, dizia, desejava-me força naquele momento difícil. Nestas duas semanas, enviei-lhe duas mensagens, desejando-lhe força também, para os tratamentos. “Brigado”, respondeu ele, “isto irá”.

Hoje a crónica sai, não sei se em condições para ser lida, peço desculpa por isso. É 25 de abril, e o Miguel Portas morreu ontem. É duro. Daqui a uma semana será 1º de maio. O dia de anos do Miguel Portas, data que o enchia de vaidade. Isto é mais do que duro. É cruel.

Foi cruel morrer assim o Miguel Portas, tão dolorosamente. Mas ele não se zangou com a vida. Logo o Miguel, que tantas vezes na vida se zangou sem razão, não se zangou com a vida, mesmo quando teve toda a razão para isso. Mas ele só podia gostar muito da vida. Tanto que nunca acreditou que ela lhe pudesse fazer esta desfeita. Há mesmo pessoas em que o gostar muito da vida está na raiz de tudo.

Isto irá, Miguel. Hoje é 25 de abril. É dia de descer a Avenida da Liberdade. Vão lá muitos amigos, de cravo na mão, camaradas teus, namoradas tuas, gente com quem te zangaste, gente com quem te reconciliaste, gente com quem fizeste política, e jornalismo, e amizade, e com quem desfizeste também. Para qual das coisas tinhas mais talento? Também isso discutiremos ao descer a Avenida da Liberdade, mesmo os que não puderem descer a Avenida; lembraremos os jornais, e a política, e as amizades.

Isto irá. Daqui a uma semana é 1º de maio. Ser-te-á prestada homenagem, quando já estivermos mais repostos. Os teus amigos farão outra coisa: festejarão o teu aniversário. Mesmo aqueles que andaram à bulha contigo. Todos sentem a tua falta. Até de andar à bulha contigo. Falarão das coisas que fizeste, lembrarão como entraste na vida deles, e não esquecerão nada, das coisas mais importantes àquelas que não têm importância nenhuma. Como lhes arranjaste um emprego. Como o jornal foi à falência. Como fizeste um partido novo.

E, sabes, Miguel? Isto irá. Aprenderemos finalmente, talvez não seja já para amanhã, mas aprenderemos. A fazer as coisas de outra maneira. A ser camaradas. A respeitar as diferenças. A juntar forças, mesmo. Tu, que nunca foste sectário, vais gostar de ver. Mas como eras taticista, vais ficar surpreendido.

Isto irá, finalmente. Faremos deste um país melhor. Teremos de ser muito melhores para o conseguir fazer, é claro. Mas isto irá. As coisas estão difíceis agora. Mas um dia vamos reconstruir o que agora está sendo destruído. Nascerão as novas escolas, e teatros, e serão reconstruídos os prédios velhos.

E haverá mais. Haverá viagens, Miguel, em que se arrancará logo de madrugada. E piadas contadas em várias línguas, francês desenrascado, italiano macarrónico, inglês acabado de aprender, uma ou duas palavras em árabe. Isto irá. Hão de cair mais uns tantos muros, vais ver. E vai haver jogos de futebol contigo como guarda-redes. E vão aparecer uns jornais e umas revistas novas, com um pessoal novo, talentoso, que havemos de descobrir. Vamos ter umas boas ideias. E, tal como garantiste tanta vez, vamos dar a volta a isto. Vamos dar a volta a tudo. Nem sempre acreditei, é certo. Mas isto irá.

Rui Tavares, publicado em ruitavares.net

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Consegue-se viver sem esperança?

Diz-me, sabes viver sem esperança? Claro que não. Se soubéssemos, como é que vivíamos? Olha para nós, tenta ver-nos de fora. Já imaginaste? Vivemos a lutar por coisas e, convenhamos, a maioria não sonha os mesmos sonhos que nós. E nós? Acreditamos que um dia talvez e continuamos. No fundo, de quando em vez é-nos momentaneamente atraiçoada a esperança por não nos deixarem experimentar o que seria a vida se os nossos sonhos fossem vividos. Eu gostava de um dia poder pôr em prática o que defendemos, com todos os riscos e sem nenhum dos medos. Tu não? Tenho pena de nunca ter podido ‘sujar as mãos’, mas já lá andámos perto muitas vezes. Foram mais as coisas que mudámos do que pensamos e a traição não é coisa que caiba bem no coração. Passa e volta a esperança.

 O que é que ficou por dizer? Nada ficou por dizer. Tudo o que era para ser dito, ficou dito. Lembra-te disso, sempre. Se as palavras não te saem porque coladas à garganta ou amarradas no peito é porque não quiseram sair. Engolem-se, transformam-se em gestos, desaparecem. Às vezes o problema são as palavras a mais e até com essas se aprende a lidar. É a vida a deixar-se viver.

 

E as mágoas? Enterram-se. Não servem de nada, consomem tudo. Devemos evitar o ressentimento, o ódio, as vaidades reprimidas. Do passado devemos usar o saber e o que dele aprendemos de útil para a frente. Útil? Sim, o que pode ser usado. E ressentimentos? Não consigo entendê-los. E sabes bem que a minha falta de memória é quase uma lenda.

 Ainda é tão cedo, fica mais um bocado, sim? Não é cedo, não é tarde. Foi o tempo que o tempo permitiu. Foram muitas as vidas dentro desta vida e foram quase sempre muito boas. Havia ainda projectos, há sempre projectos para fazer. Sabes bem como estamos sempre a fazer contas de multiplicar. Continua com os teus, abre campo ao teu experimentalismo, consegues sempre. Sempre? Pronto, quase sempre.

 O que sentes agora? Paz. Muita paz.

E agora, Miguel? É simples: voa. Voem.

 Marisa Matias in Diário das Beiras 28/04/2012

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O princípio da Esperança

Na minha juventude usávamos uma frase do Gramsci com que se pretendia expressar a nossa forma de ver o mundo e as adversidades do dia-a-dia. Tínhamos “o pessimismo da razão e optimismo do coração”. O Miguel foi abençoado com uma razão em que o coração e um imenso optimismo mandavam. Para ele era sempre possível tomar os céus de assalto e exigir o impossível, para me manter na linguagem de uma tribo diversa e particular de que ele era um dos expoentes. As vidas não têm resumo. Mas alguns gestos condensam uma existência.

Em 1982, o Miguel imaginou uma cidade num deserto. Durante mais de uma semana, milhares de jovens acampariam na praia do Carvalhal, na Comporta, em Tróia. Nada havia lá, para além do mar e dos mosquitos. Menos de um ano depois, sucediam-se debates, concertos e festas sob o lema “Dêem uma oportunidade à paz”. Neste debates participavam pessoas com opiniões plurais e diversas. Mais de dez mil concentraram-se na cidade de Setúbal contra a instalação dos mísseis nucleares dos EUA em território europeu. Um ano antes, ninguém julgava possível a construção de uma verdadeira cidade no meio de uma praia deserta. Mas o Miguel tinha a capacidade de nos fazer sonhar. Inspirava-nos a transcender a nossa vida e a mudar a realidade. E, de facto, centenas de pessoas mobilizaram-se para que, em Junho de 1983, aquilo que alguém tinha imaginado se transformasse numa vontade colectiva e numa realização de muitos.

Alguns dos seus amigos diziam a brincar que o Miguel tinha a capacidade de vender frigoríficos aos esquimós no Pólo Norte. Só assim se explica que com a ajuda dos seus amigos Dias da Cunha e Jorge Sampaio tenha falado com os banqueiros Jardim Gonçalves, José Roquette, Artur Santos Silva e Rui Vilar de que o país precisava de um semanário de esquerda e que eles deviam investir nisso, tendo convencido parte deles. Dessa vontade e capacidade nasceu o semanário “Já”, que juntava jornalistas e activistas de esquerda provenientes da revista “Contraste”, que o Miguel tinha dirigido, e dos “Cadernos Politika”, uma revista da Juventude Comunista Portuguesa. Durante mais de um ano, aquilo que parecia irrealizável foi feito com o trabalho de muitos e com umas dezenas de milhares de contos de uns poucos.

Tinha um sorriso caloroso e uma generosidade contagiante. No meio do trabalho era possível os amigos zangarem-se com ele, mas era impossível ficarmos muito tempo furiosos. Era o Miguel e conquistava-nos com um novo sonho, uma nova quimera, uma nova ideia impossível. A verdade é que, nas suas mãos, as coisas pareciam fáceis.

Quem imaginaria que era possível fazer o Bloco de Esquerda?

Na passada quinta-feira tentei falar com ele, as notícias não eram boas. Respondeu-me por SMS, com o humor do costume: “A tua sorte é que não consigo falar. Novidades?” Não abordámos o maldito cancro. Informei-o de que a polícia de intervenção tinha cercado e isolado a escola da Fontinha e que uma pessoa nossa amiga estava lá dentro. Escreveu-me “manda-lhe um abraço de solidariedade”. Apesar de se saber sem tempo, escreveu um dos seus últimos comentários no facebook: “A Es.Col.A da Fontinha, que tem um trabalho mais do que meritório com a população do bairro, está a ser despejada à bruta por uma cruzada de políticos idiotas. Que todas as boas vontades se juntem contra a estupidez. Já.”

Certamente que se orgulharia dos milhares de jovens que no dia da liberdade, contra “a tolerância zero ao 25 de Abril” de um intendente da PSP, a retomaram, e diria com aquela voz rouca e calorosa: “É a nossa gente.” E rir-se-ia do autarca portuense que, no dia seguinte, mandou roubar as sanitas e as canalizações para que as populações não pudessem imaginar fazer qualquer coisa daquela escola. Miguel Portas sempre foi um militante político, mas o seu combate foi arranjar-nos formas de podermos concretizar os nossos sonhos e correr com a gente que se dedica a uma política de sarjetas.

Nuno Ramos de Almeida in Jornal i 27/04/2012

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Miguel

Conheci o Miguel, sardento, louro, espigado, irrequieto e tinha 13 anos. Foi numa assembleia de estudantes do ensino secundário, que se realizou na cantina de Económicas, o ISEG de hoje. Discussões acaloradas, heroísmo à flor da pele, a ditadura e a guerra pela frente – nessa altura, o futuro era magnífico. E foi. O 25 de Abril e os melhores anos da nossa vida, como dizia o José Afonso.

Economista por empréstimo, foi sempre jornalista e político por vocação. Com a vertigem dos anos finais da ditadura, entrou na UEC e foi escolhido para a sua comissão central em 1974. Do PCP sairia em 1989, quinze anos depois e sem mágoas, sempre respeitador dessa vida militante. Entretanto, foi animador cultural na Câmara de Ourique e na serra algarvia. Aprendeu o trabalho local, a importância da cultura e da comunicação popular. Tornou-se jornalista, lançou a revista “Contraste” em 1986 e fez dela um ícone da cultura à esquerda. Foi depois jornalista do “Expresso”, a partir de 1988, e editor internacional da sua revista até 1994. Fez a cobertura da campanha eleitoral do PSR em 1991, e lembro-me de como se divertia com a minha ingenuidade sobre o que seria ser deputado. Tinha razão.

A partir de 1995, fez aquilo de que mais gostava, criou um jornal em que podia agir com as suas próprias escolhas. O “Já” foi essa aventura, depois a “Vida Mundial”. Fez a cobertura da queda do regime da Roménia, onde sentiu o cheiro do 25 de Abril e os riscos do que aí vinha. Com jornalistas, amigos, gente de talento e de vontade, inventou jornalismo, fez actualidade, lutou pelas ideias, convidou opiniões. Que falta que faz um jornal como esses.

Escreveu três livros: “E o Resto é Paisagem” (2002), “No Labirinto”, sobre o Líbano (2006) e “Périplo”, sobre as histórias do Mediterrâneo, com Cláudio Torres (2006). Como sempre lembra o Inimigo Público, o suplemento satírico do Público, a sua profunda ligação ao Médio Oriente levava-o a interessar-se pela sua gastronomia, pelo cinema, pelas lendas, pelas histórias, pelos partidos, pelas guerras e pela paz. Tomou posição. Arriscou-se. Falou com todos. Atravessou o Líbano debaixo de bombardeamento israelitas. Defendeu energicamente o povo palestino. Juntou-se às vozes dos movimentos de paz em Israel.

Viveu a vida intensamente e com gosto. Foi dirigente do Bloco e eurodeputado até ao último momento. Incentivou-nos da cama do hospital. Combinou a sua viagem que faltava, à Birmânia, e que nunca fará. Despediu-se dos filhos.

Viveu connosco e nós vivemos com ele. Perdemo-lo e não o esquecemos. Um abraço, Miguel.

Francsico Louçã, publicado na página do facebook 

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O Bloco do Miguel

Escrever sobre o contributo de alguém que nos acabou de deixar não é com certeza uma tarefa fácil. E não o é ainda mais quando esse alguém é nada mais e nada menos do que o Miguel Portas, consensualmente reconhecido como uma das figuras mais marcantes da esquerda portuguesa dos últimos anos. De qualquer modo, parece-me fácil encontrar uma palavra para o definir: lucidez. Em quem lia, ouvia e acompanhava expectante as sua intervenções, a sua aguçada lucidez até feria.

Privei pouco com o Miguel. Mas tal não impede que sobre ele tivesse uma tremenda admiração. Via-se que tinha uma paixão imensa pelo mundo e pela sua diversidade. Por um mundo que não era plano, que estava em permanente mudança, repleto de contradições, incertezas e injustiças, mas no qual valia a pena viver. E viver para poder compreendê-lo, conhecê-lo e sobre ele conseguir intervir. E intervir à esquerda, sabendo que não se consegue mudá-lo do dia para a noite, mas procurando torná-lo mais livre, mais justo, um sítio muito melhor para todos os que cá estão.

Sendo o Bloco uma invejável confluência de várias visões, cada qual com inúmeras qualidades, julgo que ao Miguel Portas fica associada uma permanente vontade do partido se reinventar. De não cair em dogmatismos, de fugir da cristalização, encontrando sempre no debate e na contradição uma forma de se renovar e de melhor responder aos desafios de um mundo em constante mudança. O Miguel personalizava essa esquerda inconformada, pouco permeável a maniqueísmos na análise da realidade e ao mesmo tempo inabalável na vontade de fazer diferente. Uma esquerda sedenta de viver, sedenta de diversidade, com vontade incessante de ouvir vozes diferentes, visões e perspetivas diversas que lhe permitam questionar-se a si própria e assim melhor orientar a sua ação.

É um orgulho fazer parte e contribuir para este projeto político em que o Miguel tanto acreditou. E embora tendo a certeza que a sua política estava muito longe de se cingir ao universo partidário (seria extremamente redutor se assim fosse), é bom sentir no Bloco o seu importante contributo para esta esquerda arejada que não desiste de fazer o mundo melhor. Obrigado, Miguel, e até sempre.

João Ricardo Vasconcelos in esquerda.net 27/04/2012

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Adeus Miguel

Recordar um grande amigo que acaba de nos deixar é um exercício obrigatório e de algum modo egoísta. Os momentos particulares que pomos a desfilar na mente são também uma forma de sublimar a dor que nos esmaga. E também de tentar eludir o pavor que nos desperta essa terrível doença que tantos ceifa sem que de uma vez por todas alguém lhe descubra a cura.

Tive o privilégio de partilhar com o Miguel alguns grandes momentos, nessa amizade que nos uniu durante quase 40 anos. Eis alguns flashes que me ocorrem, desordenadamente, e que podem ajudar a compor um perfil mais abrangente que o do animal-político que ele também era.

O precoce

Era ruivo, sardento e andava sempre de calções. Os amigos referiam-se a ele como “o puto Portas”. Era um dos mais novos ativistas do ensino secundário de Lisboa, e dava a cara pelos “unitários”, a corrente animada pelo PCP, mas – ups! – o código dos ativistas que começavam a entrar na política pela porta da luta contra a ditadura impedia-nos de falar de partidos clandestinos. Eu e muitos outros entrámos em 1972 ou 1973 na atividade associativa – de facto, na luta política – e quando chegámos, o Miguel já lá estava. Era um ano mais novo que eu e já sabia mais, tinha lido mais, argumentava melhor. Apesar disso, não conseguiu levar-me para os “unitários”. Mas ficámos amigos, e a amizade resistiu mesmo quando mantínhamos opiniões tão diferentes, e às vezes tão antagónicas. Era difícil não se ser amigo do Miguel.

O homem de ideias

Nos dias que correm, parece cada vez mais difícil encontrar políticos que se guiem exclusivamente pelas ideias. Não pelos cargos, não pelas carreiras, não pelo dinheiro. Pelas ideias. Outros muito menos capazes que o Miguel também romperam com o PCP, só que deixaram de se guiar por convicções. Outros valores se levantaram. O Miguel não queria ser ministro, nem executivo de uma estatal, nem banqueiro. Não: queria ser fiel às suas ideias. Que, como é bem sabido, o empurravam para fora do establishment político, a “correr por fora” e a “começar de novo”. E assim nasceu o Bloco de Esquerda.

O jornalista

Escrevia bem, tinha faro, mesmo em revistas mensais sabia a importância de arranjar “caxas” – como a que pela primeira vez revelou que Melo Antunes e Álvaro Cunhal se tinham encontrado secretamente às vésperas do 25 de Novembro de 1975.

Ciente da limitadíssima amplitude do leque político da imprensa portuguesa, lançou projetos jornalísticos que foram uma lufada de ar fresco: o semanário Já e a revista Vida Mundial. Foi este último que me fez voltar a Portugal, depois de 17 anos de Brasil. Um dia vim de férias à “terrinha” e ele disse-me: “Vens e já não voltas para lá”. Foi em 1998. Passámos uns anos divertidíssimos. As nossas conversas ao almoço, das quais participava sempre o Daniel Oliveira, eram estimulantes e prolongadas. Mas foram o segredo de tantos sucessos. A Vida Mundialdurou poucos anos, é certo. Mas ganhou prémios e lançou jornalistas, fotógrafos e ilustradores de enorme qualidade. Até escritores que viriam depois a ganhar grande fama publicaram na secção de contos da revista.

A paixão pela banda desenhada

Lia muito, ouvia boa música, e em especial muito jazz – influência do pai – mas sobretudo não se separava da sua coleção de álbuns de banda desenhada. Ocupavam uma parede inteira, de alto a baixo. Quando foi para Bruxelas, levou-a consigo. Um dia, emprestou-me o apartamento nas férias. Ao ver aqueles álbuns todos, senti-me como uma criança a quem lhe franqueassem livremente uma loja de brinquedos. Literatura, economia, ensaio… tudo isso ele lia. Mas a BD era outra coisa. Era uma paixão.

Périplo

No início chamou-se “À Procura da Atlântida” e acabou por receber o título de “Périplo”. A série documental cuja autoria o Miguel dividiu com o Cláudio Torres e comigo, o Camilo Azevedo realizou e ele também apresentou, levou-nos a viajar pelo Mediterrâneo. Tunísia, Líbia, Egito, Jordânia, Líbia, Síria, levámos um banho de história que nos deu água pela barba a descodificar. O resultado pode ainda ser visto nos DVDs que acompanham o livro com o mesmo título que o Miguel escreveu. Quem veja pode admirar um trabalho notável de divulgação histórica com rigor e sensibilidade, feito numa altura em que o mundo árabe era demonizado pelo homem sem cultura que ocupava a Casa Branca.

Mas quem vir não vai conseguir ter uma ideia dos dias e dias de discussões para montar aquelepuzzle, para contar aquela história que tem camadas e camadas sobrepostas, como uma cebola. Mas sobretudo talvez apenas intua o que nos divertimos a fazê-lo.

E aqui fica o testemunho: o Miguel era o melhor companheiro de quarto com que se poderia sonhar. Dormia tão profundamente que não ouvia os meus roncos. Acordava cedo e imediatamente com uma boa disposição e uma energia notáveis. Enquanto outros tentavam começar a funcionar, já ele tinha feito dezenas de coisas. A sua enorme capacidade de trabalho era um dos segredos das suas realizações pessoais.

Devo-lhe muito. Devemos-lhe muito. Morreu muito jovem. Um dia, já doente, falando-lhe eu de um tratamento novo de uma doença crónica de que sou paciente, que me assegurava talvez uns cinco anos quase sem sintomas, deixou escapar: “É pá! Mas isso é uma eternidade!”

A vida por vezes é muito injusta.

Luís Leiria in esquerda.net 25/04/2012