Revista Manifesto nº 1

9.50

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Descrição

Editorial

A Manifesto começa de novo. Começar de novo era uma expressão frequentemente utilizada por Miguel Portas, quando se tratava de dar impulso a um processo político ou um projeto editorial, demonstrando dessa forma o seu entusiasmo e a vontade de o semear em seu redor. Talvez por isso seja também apropriado encarar a série que agora se inicia como um certo recomeço.

Curiosamente, apesar das diferentes conjunturas em que a revista Manifesto existiu – nos anos 90 dirigida por Ivan Nunes, em formato jornal; nos anos 2000, pelo Miguel Portas – os propósitos de fundo mantêm-se, porventura, pouco alterados. Com novos problemas e outros desafios, certamente, continuamos interessados nos debates plurais à esquerda, nas discussões sobre o seu futuro e o seu papel no contexto português, e nos possíveis processos de convergência entre as diferentes sensibilidades que a constituem, incluindo pessoas e movimentos que não integram nenhuma formação partidária.

A Manifesto mantém, portanto, a sua natureza de projeto coletivo e cooperativo. As peças que compõem cada número da revista constituem contribuições gratuitas para o tratamento de cada tema definido. O Conselho Editorial e a Direção agradecem por isso o interesse e disponibilidade dos autores do presente número (e dos que se lhe seguem).

Como no passado, os números da Manifesto serão essencialmente temáticos – com cada tema tratado por ensaios, entrevistas e outro tipo de registos, numa coexistência de abordagens e linguagens que pode oscilar entre o académico e o político, a expressão artística ou literária, a lógica de ensaio ou jornalística. Esta nova série não deixa, contudo, de incorporar algumas mudanças. A revista passa agora a integrar uma secção de atualidade. Será ainda criado um espaço da revista em www.manifesto.com.pt onde se disponibilizarão alguns dos textos publicados. Por último, a revista poderá ser objeto de assinatura (por quatro números), o que constitui também uma forma de a apoiar.

O Povo é o tema escolhido para este primeiro número da nova série.

Pretendeu-se convocar abordagens e visões que discutem reconfigurações do “povo” no contexto turbulento da Grande Recessão que marcou a última década. Os convites feitos a autores visaram, primeiro, uma análise, em vários eixos, das dificuldades na mobilização popular à esquerda, a par de uma crescente capacidade por parte da extrema-direita; e, segundo, com base nessa análise, num elencar de propostas para uma estratégia discursiva e política à Esquerda.

Daqui surge um dossiê composto como um mosaico de olhares que revisitam essa última década e os “novos nomes” que foram atribuídos aos seus processos políticos: a emergência dos chamados populismos; a ubiquidade do tema da precariedade no trabalho, e a sua relação com a crise do sindicalismo: a inquietação sobre a escala adequada de mobilização popular para os combates contra as políticas de austeridade e a financeirização, o povo europeu versus as democracias nacionais; e alguns dos processos eleitorais que baralharam as distribuições clássicas de preferências políticas populares ( EUA; as eleições francesas, com Le Pen na segunda volta; e mais recentemente a reviravolta em Itália).

Na entrevista de abertura temática, Noam Chomsky guia-nos pelo processo de transformação política norte-americana, a partir da análise dos dois discursos antagónicos que se dirigiram às classes populares perdedoras dos processos de globalização neoliberal, e que assentam em propostas radicalmente distintas sobre quem é o “povo”– Trump versus Bernie Sanders. Como se constrói o povo, conta. Ana Margarida de Carvalho retrata a insinuação da condição de precariedade no nosso quotidiano. António Sampaio da Nóvoa e Daniel de Jesus olham a centralidade das políticas públicas, dos espaços de vivência institucionais e do quotidiano, como elementos determinantes na produção da configuração do “povo”, e os seus efeitos. Isabel do Carmo questiona que povo é esse “de que se fala”.

Também neste número, Chantal Mouffe parte das propostas de Ernesto Laclau para definir populismo como «a estratégia de construção da fronteira política»: a estratégia que cria um «nós» e um «eles» político. Nesse sentido, recoloca os termos do debate sobre o populismo. Não se trata de um facilitismo na mobilização política; antes da necessidade, sempre presente em política, de definição de uma linha de conflito. A linha traçada, a forma da construção do “povo” nesse contexto e as fronteiras dessa identidade são centrais na definição do seu carácter político progressista ou excludente. É nesta linha que João Rodrigues argumenta a favor de um populismo de matriz socialista.

Contudo, é também possível pensar que a dificuldade de mobilização do Povo à Esquerda se deve ao esbatimento daquilo que era tido como dicotómico – um eixo esquerda/direita que definia um posicionamento político claro em relação a eixos como Estado social, liberalização, soberania, distribuição da carga fiscal, papel do Estado, etc . Coloca-se, portanto, a hipótese de, nas últimas décadas, assistirmos ao esboroar de categorias que julgávamos sólidas, e que a nova paisagem política, que entretanto surgiu, criou riscos importantes, mas também múltiplas potencialidades. Neste cenário, a urgência seria encontrar «a» bandeira congregadora de um programa político que indique um posicionamento em torno destes eixos. O combate pela igualdade poderá servir essa função não só mobilizadora, como diferenciadora em relação a outras ideologias políticas.: «Sou um socialista, claro que sou um socialista. Ter a visão de uma sociedade fundamentalmente diferente, acreditar que todos podemos ser iguais – não é uma ideia nova», dizia Bernie Sanders na sua campanha. Trata-se, portanto, de começar de novo.

O Conselho Editorial