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‘O vício da roleta’

A Irlanda seguiu a receita que nos andam a prescrever há anos: impostos baixos para as empresas, desregulação dos mercados de capitais e leis laborais flexíveis. Durante algum tempo o sonho cumpriu-se: o dinheiro veio e o mercado imobiliário floresceu. “Olhem para a Irlanda”, dizia-se. Até que, em 2008, a crise do subprime mostrou como o dinheiro fácil se pode transformar num pesadelo. Em apenas dois anos o PIB caiu cerca de 11%. O desemprego disparou de 4,6%, em 2007, para 13,7%, em 2010. Confirmou-se que quando a crise aperta a flexibilidade não promove o emprego.


A banca, exposta como poucas aos humores internacionais, entrou em colapso. Foi necessário salvar a primeira vítima. Custou 17% do PIB. O défice passou para 32%. A Irlanda foi das primeiras a optar pela austeridade. “Olhem para a Irlanda”, repetiram. A coisa piorou ainda mais: mais crise e mais desemprego. Apesar das contas públicas irlandesas só precisarem de ir aos mercados da dívida em abril, a Europa obrigou o Governo a aceitar a taxas de juro usurárias para nacionalizar mais dois bancos. A razão? As perdas da banca europeia exposta à Irlanda seriam avassaladoras.
O que é exigido à Irlanda em troca do seu suicídio económico? Mais flexibilização do mercado de trabalho, diminuição do salário mínimo, novos cortes nos salários dos funcionários públicos e diminuição do subsídio de desemprego. Novas regras para os mercados de capitais? Nem uma. O que está em curso, e não apenas na Irlanda, é uma transferência de dinheiros públicos e de recursos que estavam destinados aos custos em trabalho para o sistema financeiro se reerguer. E isso faz-se de três formas: dinheiro do Estado para salvar a banca falida, redução de salários e de prestações sociais e empréstimos baratos do BCE à banca para que esta empreste caro aos Estados. Como a especulação com o imobiliário já foi chão que deu uvas, há que passar as fichas deste casino para as dívidas soberanas. E são os cidadãos que bancam a aposta perdedora: com os atuais níveis de dívida e recessões induzidas pela austeridade, esta tentativa de recapitalização do sistema financeiro está condenada.
Da Europa, já veio um recado para Portugal: para se salvar tem de fazer “reformas estruturais”. Conhecemos o nome de código para a privatização de serviços públicos e flexibilização do mercado de trabalho e, desta vez, a mensagem até foi razoavelmente explicita. Em que é que isto ajudaria à redução da nossa dívida privada, o maior problema português? Em nada. Mas não é isso que preocupa os eurocratas. Aquilo a que estamos a assistir é a um PREC europeu. Já ninguém fala, como falava há dois anos, em disciplinar os mercados financeiros. Agora a palavra de ordem é destruir o modelo social europeu, que não teve qualquer responsabilidade no que nos aconteceu. E um exército de avençados tratam de convencer os cidadãos que este é o único caminho.
Soluções? Apenas uma: uma convergência democrática dos cidadãos da Europa. Ou resgatam, através do voto, o poder que lhes foi roubado, ou podem despedir-se do projeto europeu e do Estado Social. Está tudo a ser apostado no casino. Ou, como faz a família de um jogador desesperado, travamos a irresponsabilidade ou tudo o que demorámos meio século a construir será perdido na roleta.

Texto de Daniel Oliveira publicado na edição do Expresso de 4 de dezembro de 2010