Publicado em

‘O voto, essa formalidade’

Uma segunda volta iria resultar na contenção do crédito e na subida das taxas de juro. Esta é a forma como Cavaco Silva vê o nosso voto. Uma formalidade para despachar. Queria umplebiscito.

O último argumento de Cavaco Silva para votarem em si é não haver mais campanha, porque “os custos seriam muito elevados para a economia portuguesa”. E explicou: isso aconteceria por via da contenção do crédito e pela subida das taxas de juro. Cavaco não quer apenas que os políticos se calem para não aborrecer os mercados. Quer que os eleitores votem nele depressa para não lhes desagradar. Esta frase é o melhor retrato do pensamento político de Aníbal Cavaco Silva. E ela explica porque lida o Presidente tão mal com exame público, com os debates, com a contestação e com tudo o que define a vida democrática de um País.

Cavaco respeita formalmente a democracia porque, felizmente, a democracia é mais forte do que ele. Suficientemente madura para alguma vez ter sucumbido ao seu espírito autoritário. Mas Cavaco Silva não é, nunca foi, um espírito democrático. E por isso trata as eleições como um mero ato administrativo. Uma coisa aborrecida, que nos faz perder tempo e dinheiro e pode aborrecer os especuladores.

Não é de hoje. Andámos, e com razão, nos últimos anos, irritados com as tentativas socratistas de controlar a comunicação social. Mas quem foi, como eu fui, jornalista no consulado de Cavaco Silva no governo sabe que nada se compara às pressões dos seus ministros, muitas vezes bem sucedida, para calar os jornalistas.

A detenção de sindicalistas, na terça-feira, causou, e muito bem, uma justa indignação. Cavaco quase ia abrindo a boca sobre o assunto, mas lá se defendeu com o seu estatuto de Presidente. Quem tem memória lembra-se que as bastonadas sobre manifestantes, fossem eles estudantes, trabalhadores ou cidadãos indignados com o aumento das portagens na ponte 25 de abril, eram quase uma rotina. O seu ministro da Administração Interna, Dias Loureiro, tinha, como se sabe, um grande apego à lei e à ordem. Coisa que, como se viu depois, manteve como conduta de vida. E quem tem memória não se esquece do enxovalho internacional que foram as imagens de polícias a carregar sobre polícias.

Cavaco Silva dizia que não tinha dúvidas. Que não se enganava. Que duas pessoas de boa-fé, com a mesma informação, só podem chegar à mesma conclusão. Que não lia jornais. Que sabe que ninguém é mais honesto, mais conhecedor, mais capaz do que ele. Muitos portugueses gostam disto. Até muitos jornalistas gostam disto, como se vê pelo blackout sem paralelo numa campanha eleitoral que vão fazendo ao que se vai sabendo sobre a sua relação com o BPN. Há uma boa percentagem de portugueses que sonha com um líder com mão firme que “ponha isto na ordem”. E de jornalistas que só respeita quem não lhe dá confiança.

Cavaco é um símbolo. Um símbolo que nos recorda que não temos ainda 40 anos de democracia. Ela é firme e resiste a quem não se sente confortável nela. Mas este símbolo recorda-nos porque suportámos durante tantas décadas um tiranete. Porque, infelizmente, há muita gente que gosta de ser mandada. E que acha, como Cavaco, que eleições, campanhas e tudo o que define uma democracia são uma perda de tempo e de dinheiro.

E esta, mais do que o BPN, que as opções económicas erradas do cavaquismo, que os silêncios e omissões do Presidente, que o seu primeiro mandato cheio de episódios insólitos, é a razão porque nunca Cavaco Silva poderia contar com o meu voto. Porque só dou o meu voto a quem não o vê como uma perda de dinheiro e de tempo. E a quem não se atreve a fazer chantagem para o conseguir. Demasiados portugueses perderam a liberdade e até a vida para eu ter direito a isto. Por isso, como cidadão, exijo um respeito absoluto por este ato. Nenhuma urgência e nenhum dinheiro valem mais do que a democracia. E nenhumas eleições são um plebiscito.

No domingo, votarei por convicção. Uma convicção positiva: votarei em quem me garante que resistirá à ofensiva que aí vem, à boleia da crise, contra o Estado Social, o Serviço Nacional de Saúde, a Escola Pública, os direitos laborais mínimos e o apoio aos mais pobres que não se resuma à caridade e à distribuição das sobras dos restaurantes. Mas também uma convicção negativa: não quero ter como Presidente da República um homem que olha para a democracia que jura defender como uma perda de tempo e de dinheiro. Quem não compreende a essência do Estado Democrático não tem estatura política para o respresentar.