Intervenção da Filipa Vala na sessão pública “Por uma Governação Decente”
Começo por dizer que nunca esteve nos meus planos de vida inscrever-me numa associação política.
Mas há uma semana atrás, tornei-me membro da associação fórum manifesto.
Se me tivessem dito que chegaria ao aniversário dos 13 anos do meu doutoramento sem nunca ter tido um contrato de trabalho em Portugal, não acreditaria.
Principalmente não acreditaria se acrescentassem que durante esse período iria estar sempre a trabalhar.
É triste chegar a esta fase da minha carreira e dizer “tenho sorte”. Tenho sorte porque estou a trabalhar e mais sorte tenho porque trabalho no que gosto.
Numa sociedade com 10 milhões de habitantes em que um milhão e meio estão desempregados (isto não são os números oficiais), ter trabalho é uma questão de sorte.
Não é uma questão de excelência, nem de empreendorismo, nem de inovação.
A narrativa da excelência, do empreendorismo e da inovação, aliada à precarização e destruição de postos de trabalho – que já existia, mas se agravou de forma inimaginável com este governo – é uma narrativa de humilhação.
Serve para humilhar os desempregados, pondo neles a responsabilidade da sua situação, fazendo com que acreditem que o lhes falta é excelência, empreendorismo e inovação.
Seve para humilhar candidatos a postos de trabalho obrigando-os a aceitar condições indignas.
Serve para humilhar trabalhadores sob a ameaça de despedimento.
Serve para humilhar pessoas como eu, que sabem que no concurso de bolsa que ganharam, foram eliminados colegas com igual capacidade, talento e motivação.
Pessoas que como eu são obrigadas a dizer “tive sorte”.
E para que serve uma narrativa de humilhação?
A humilhação gera subserviência e desânimo, que são duas condições essenciais para aceitar um discurso de inevitabilidade.
A narrativa da humilhação serve para que acreditemos que é inevitável o desemprego, a precarização, os cortes salariais, os cortes nas pensões, as privatizações, a não renegociação efetiva dos contratos de parceria pública-privada ou de swaps. É tudo inevitável.
A subserviência e o desânimo que decorrem da narrativa de humilhação servem para que aceitemos como inevitáveis o crescimento da desigualdade social e o desmantelamento do Estado Social.
Tudo se resume a fazer com que aceitemos a ausência de uma alternativa.
Porque se aceitarmos a ausência de uma alternativa, estará minado, pela raiz, o exercício da democracia.
Se não há alternativa, não vale a pena votar.
Acontece que há alternativa e que sabemos que ela existe.
O trabalho dos vários movimentos sociais e de iniciativas como o Congresso Democrático das Alternativas, ou a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à dívida que reúnem diversas tendências políticas, e o trabalho dos grupos parlamentares da oposição, sobretudo do Bloco de Esquerda e da coligação CDU, mostra que existem políticas alternativas.
Aliás, o trabalho destes movimentos, iniciativas e partidos tem servido para clarificar três coisas:
– que a política em curso não é, ela própria, alternativa nenhuma, na medida em que não cumpre sequer os objetivos e metas que se propõe;
– que a alternativa passa obrigatoriamente por uma reestruturação da dívida;
– que o euro e o pacto orçamental são espartilhos que dificultam a nossa recuperação económica.
Ou seja, o diagnóstico da situação política feito por estes movimentos e iniciativas e grupos da oposição é convergente no essencial.
Julgo que uma convergência tão ampla à esquerda é inédita na nossa democracia.
Mais surpreendente ainda, no que respeita aos grupos parlamentares do Bloco e da CDU, as metas a atingir também são convergentes:
– reverter a taxa de desemprego
– reverter os cortes nos salários e nas pensões
– combater a precariedade
– parar o processo de privatizações
– impedir a negociação de contratos lesadores do erário público e renegociar os que já existem
– promover a transparência, eliminando os conflitos de interesse, no processo de decisão legislativo e governamental
– preservar o Estado Social, assegurando serviços públicos de qualidade em todas as suas vertentes
– reverter a desigualdade social, promovendo uma sociedade socialmente justa e solidária através de uma política fiscal adequada…
são exemplos dessa convergência de metas e objetivos.
Na situação em que nos encontramos, eu esperaria que esta convergência atraísse uma porção significativa do eleitorado para os partidos com assento parlamentar e que se posicionam à esquerda do partido socialista.
Como mostram os resultados das últimas eleições, e apesar da CDU ter reforçado a sua votação, isso não aconteceu.
Isto significa, julgo eu, que para o eleitorado português, o Bloco de Esquerda e o PCP, apesar de proporem uma alternativa política, não constituem uma solução.
E não constituem uma solução porque os decretos-lei que enunciam a alternativa política que estes partidos defendem – e de que precisamos – estão, na sua larguíssima maioria, guardados em gavetas.
Não estão publicados em diário-da-república.
No final da última reunião entre as direções do Bloco e do PCP, João Semedo destacou que o que está em causa não é um arranjo eleitoral.
E citou Jerónimo de Sousa dizendo que cada partido vai na sua bicicleta, mas que a estrada é a mesma e que a bicicleta às vezes tem dois selins.
Foi no dia em que li esta notícia, que decidi inscrever-me na associação fórum manifesto:
Dá-se o caso de eu saber andar de bicicleta.
E, talvez porque vivi muitos anos na Holanda, sei andar numa bicicleta de um só selim, com duas, três e até quatro pessoas.
É verdade que andar de bicicleta neste tipo de formação não é a forma mais confortável de andar de bicicleta.
E também é verdade que andar de bicicleta a dois, três ou quatro, não é fácil:
é um trabalho de cooperação e equilíbrio que requer algum talento.
Mas posso assegurar que quando a situação assim o exige, estas formações em bicicleta são uma solução que permite percorrer distâncias consideráveis e levar toda a gente para casa.
No que respeita a andar de bicicleta, portanto, acho que estou em posição de dizer que faltam algumas competências ao Bloco e ao PCP.
O problema não é o destino, nem a estrada e provavelmente nem sequer será a cooperação e o equilíbrio necessários.
É sobretudo a vontade de tentar chegar, em conjunto, a um destino.
Julgo que foi a expressão clara desta vontade de tentar chegar, em conjunto, a um destino que deu ao Livre os resultados que obteve na sua estreia eleitoral.
Nas circunstâncias em que nos encontramos, em que prosseguem as políticas de empobrecimento e de agravamento da desigualdade, por via da austeridade, a ausência desta vontade de tentar fazer mais do que uma boa oposição, reforça no eleitorado de esquerda o sentimento de inevitabilidade, o sentimento da ausência de alternativa.
A ausência de uma vontade clara de tentar em conjunto reforça no eleitorado de esquerda o sentimento de que estamos condenados ao rotativismo do “centrão”.
Esse sentimento de inevitabilidade, que alimenta a abstenção, constitui a arma mais forte a favor da direita.
É esse sentimento que é preciso derrotar, oferecendo à alternativa política que existe e que é convergente, uma solução que possa constituir governo.
Que mostre que não estamos condenados nem a um governo do bloco central, nem a uma maioria absoluta do Partido Socialista nas próximas eleições.
E há uma estratégia que derrota o sentimento de inevitabilidade e que nos devolve a esperança
É tentar a tal formação alargada em bicicleta.
Todos reconhecemos as enormes dificuldades que isto coloca e que teremos que enfrentar.
É urgente criar uma convergência programática que viabilize os objetivos comuns partilhados pelos partidos, movimentos e iniciativas da esquerda deste país.
Na situação de emergência em que vivemos, tentar esta convergência é uma obrigação de qualquer partido que tome como seus os ideais de abril.