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Adeus Miguel

Recordar um grande amigo que acaba de nos deixar é um exercício obrigatório e de algum modo egoísta. Os momentos particulares que pomos a desfilar na mente são também uma forma de sublimar a dor que nos esmaga. E também de tentar eludir o pavor que nos desperta essa terrível doença que tantos ceifa sem que de uma vez por todas alguém lhe descubra a cura.

Tive o privilégio de partilhar com o Miguel alguns grandes momentos, nessa amizade que nos uniu durante quase 40 anos. Eis alguns flashes que me ocorrem, desordenadamente, e que podem ajudar a compor um perfil mais abrangente que o do animal-político que ele também era.

O precoce

Era ruivo, sardento e andava sempre de calções. Os amigos referiam-se a ele como “o puto Portas”. Era um dos mais novos ativistas do ensino secundário de Lisboa, e dava a cara pelos “unitários”, a corrente animada pelo PCP, mas – ups! – o código dos ativistas que começavam a entrar na política pela porta da luta contra a ditadura impedia-nos de falar de partidos clandestinos. Eu e muitos outros entrámos em 1972 ou 1973 na atividade associativa – de facto, na luta política – e quando chegámos, o Miguel já lá estava. Era um ano mais novo que eu e já sabia mais, tinha lido mais, argumentava melhor. Apesar disso, não conseguiu levar-me para os “unitários”. Mas ficámos amigos, e a amizade resistiu mesmo quando mantínhamos opiniões tão diferentes, e às vezes tão antagónicas. Era difícil não se ser amigo do Miguel.

O homem de ideias

Nos dias que correm, parece cada vez mais difícil encontrar políticos que se guiem exclusivamente pelas ideias. Não pelos cargos, não pelas carreiras, não pelo dinheiro. Pelas ideias. Outros muito menos capazes que o Miguel também romperam com o PCP, só que deixaram de se guiar por convicções. Outros valores se levantaram. O Miguel não queria ser ministro, nem executivo de uma estatal, nem banqueiro. Não: queria ser fiel às suas ideias. Que, como é bem sabido, o empurravam para fora do establishment político, a “correr por fora” e a “começar de novo”. E assim nasceu o Bloco de Esquerda.

O jornalista

Escrevia bem, tinha faro, mesmo em revistas mensais sabia a importância de arranjar “caxas” – como a que pela primeira vez revelou que Melo Antunes e Álvaro Cunhal se tinham encontrado secretamente às vésperas do 25 de Novembro de 1975.

Ciente da limitadíssima amplitude do leque político da imprensa portuguesa, lançou projetos jornalísticos que foram uma lufada de ar fresco: o semanário Já e a revista Vida Mundial. Foi este último que me fez voltar a Portugal, depois de 17 anos de Brasil. Um dia vim de férias à “terrinha” e ele disse-me: “Vens e já não voltas para lá”. Foi em 1998. Passámos uns anos divertidíssimos. As nossas conversas ao almoço, das quais participava sempre o Daniel Oliveira, eram estimulantes e prolongadas. Mas foram o segredo de tantos sucessos. A Vida Mundialdurou poucos anos, é certo. Mas ganhou prémios e lançou jornalistas, fotógrafos e ilustradores de enorme qualidade. Até escritores que viriam depois a ganhar grande fama publicaram na secção de contos da revista.

A paixão pela banda desenhada

Lia muito, ouvia boa música, e em especial muito jazz – influência do pai – mas sobretudo não se separava da sua coleção de álbuns de banda desenhada. Ocupavam uma parede inteira, de alto a baixo. Quando foi para Bruxelas, levou-a consigo. Um dia, emprestou-me o apartamento nas férias. Ao ver aqueles álbuns todos, senti-me como uma criança a quem lhe franqueassem livremente uma loja de brinquedos. Literatura, economia, ensaio… tudo isso ele lia. Mas a BD era outra coisa. Era uma paixão.

Périplo

No início chamou-se “À Procura da Atlântida” e acabou por receber o título de “Périplo”. A série documental cuja autoria o Miguel dividiu com o Cláudio Torres e comigo, o Camilo Azevedo realizou e ele também apresentou, levou-nos a viajar pelo Mediterrâneo. Tunísia, Líbia, Egito, Jordânia, Líbia, Síria, levámos um banho de história que nos deu água pela barba a descodificar. O resultado pode ainda ser visto nos DVDs que acompanham o livro com o mesmo título que o Miguel escreveu. Quem veja pode admirar um trabalho notável de divulgação histórica com rigor e sensibilidade, feito numa altura em que o mundo árabe era demonizado pelo homem sem cultura que ocupava a Casa Branca.

Mas quem vir não vai conseguir ter uma ideia dos dias e dias de discussões para montar aquelepuzzle, para contar aquela história que tem camadas e camadas sobrepostas, como uma cebola. Mas sobretudo talvez apenas intua o que nos divertimos a fazê-lo.

E aqui fica o testemunho: o Miguel era o melhor companheiro de quarto com que se poderia sonhar. Dormia tão profundamente que não ouvia os meus roncos. Acordava cedo e imediatamente com uma boa disposição e uma energia notáveis. Enquanto outros tentavam começar a funcionar, já ele tinha feito dezenas de coisas. A sua enorme capacidade de trabalho era um dos segredos das suas realizações pessoais.

Devo-lhe muito. Devemos-lhe muito. Morreu muito jovem. Um dia, já doente, falando-lhe eu de um tratamento novo de uma doença crónica de que sou paciente, que me assegurava talvez uns cinco anos quase sem sintomas, deixou escapar: “É pá! Mas isso é uma eternidade!”

A vida por vezes é muito injusta.

Luís Leiria in esquerda.net 25/04/2012

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carta ao Miguel Portas neste Abril

Miguel, disseste aqui há tempos que “o meu único objetivo de vida é modestíssimo: não faço a menor ideia se aquilo que eu defendo vai fazer caminho ou não. O socialismo ou o comunismo não são nenhum destino. Não está nada escrito. Mas há uma coisa que sei: ao chegar ao fim da vida, quero poder olhar para trás e dizer: terei feito algumas asneiras, mas no conjunto posso partir, lá para onde for, com tranquilidade.”

Tenho andado a pensar nisto desde terça feira. Tens razão: não está nada escrito e não há destino traçado para os nossos caminhos. Como dizia um poeta que tu e eu gostamos, “Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos. Chegamos? Não chegamos? Partimos. Vamos. Somos.” A única coisa que nos proibimos a nós mesmos é o cinismo, é ou não? Foi isso que aprendi de ti: saborear o risco do erro nos ensaios para mudar a vida que fazemos de mão dada com os impuros é sempre melhor que a quietude de quem não se arrisca senão a calcular a bissectriz das certezas frias próprias das seitas que, de tão puras se quererem, desistem de mudar. Há demasiadas vidas sofridas, de pessoas concretas, marcadas pela discriminação, pela exclusão, pela desumanidade. E diante delas, é-nos exigido que nos ponhamos ao caminho, olhos postos na decência para todos. E na liberdade, sempre na liberdade.

Sim, Miguel, o que tu e eu queremos para nós e para todos é a vida em abundância. Aquela que se aprende com o tesouro que é a diversidade do mundo, não pelas fotografias da National Geographic ou pelas notícias da CNN mas indo lá, a Gaza, a Lampedusa, a Beirute sentir o cheiro das ruas, ouvir a sabedoria das gentes e contrapor a densidade da História às receitas padronizadas do pronto-a-impor político e económico.

É por causa desse culto da ignorância que este Abril é de inverno e chove desapiedadamente nas nossas vidas. Aqui, em Atenas, em Madrid, em Bruxelas. A coisa tem nomes vários. É ofensiva do capital, pois claro. É ofensiva do liberalismo, óbvio. É ofensiva anti-europeia, disseste-nos tu que amavas a Europa como espaço de combate pela afirmação dos direitos e da justiça na economia em escala transnacional. Eu digo-te: é ofensiva da tristeza. Da formatação de modos de vida acabrunhados e cinzentos, em que a competição é lei e o cuidado com os outros é remetido das políticas para o campo ocasional dos bons sentimentos. Acho que tu estarias de acordo comigo nisto: foi contra essa tristeza funda e institucionalizada que lutaste desde puto. Nas revoluções quotidianas que fazias no Passos Manuel, em Económicas ou onde fosse, era isso que te motivava, eu sei. Chamavas-lhe outras coisas mas, disseste-mo tu sem mo dizeres, era uma luta contra a tristeza que sentias necessidade de não parar nunca de fazer. Isso é o nosso Abril e tu foste daqueles raros cuja vida se resume na mais densa das frases: “25 de Abril sempre”.

Dos teus muitos traços eu guardo o teu sorriso, com aqueles olhos pequeninos e semi-cerrados. Nos momentos mais tensos da luta política, tu desarmavas-me mais com esse sorriso do que com a inteligência fina com que reinventavas discursos e teses. Aprendi muito contigo, Miguel. Talvez o mais importante tenha sido viver a política com amor mas sempre com prazer. Porque é missão mas não pode ser sacrifício. O teu sorriso tinha a marca dessa sabedoria.

Disseste a uma amiga nossa “a minha vida valeu a pena, no sentido em que foi interessante para outros.” Foi. Muito. Eu agradeço-te isso. E mando-te um abraço com carinho.

José Manuel Pureza in Diário de Notícias 27/04/2012

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‘A não-felicidade’

O Conselho Europeu do passado fim-de-semana foi assombrado pelo espectro de um plano franco-alemão para a governação económica da União Europeia. Angela Merkel afirmou que 2011 é o ano de uma renovada confiança no euro e que esperava que o actual presidente do Conselho Europeu tratasse dos detalhes de execução do seu plano; aí, Sarkozy fez de Dupont e afirmou que este iria fortalecer a competitividade e a convergência das diferentes economias.

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‘Fumos de raiva’

Quem tenha visto as imagens da última greve geral na Grécia, ou as de Roma, junto ao Parlamento que acabara de salvar Berlusconi pela estreita margem de três duvidosos votos, ou ainda as de Londres, onde um príncipe e uma duquesa passaram pelo pânico, facilmente perceberá que qualquer coisa está a irritar as multidões de jovens que saem à rua. Qualquer coisa: desemprego nos 17 por cento, precariedade generalizada no trabalho e estudos cada vez mais caros.

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