Intervenção do Ricardo Paes Mamede na sessão pública “Por uma Governação Decente”
Vivemos uma situação muito difícil e de pouco serve ignorá-lo
- Quase 800 mil portugueses encontram-se oficialmente desempregados, 500 mil dos quais há mais de 1 ano e, destes, 300 mil há mais de 2 anos.
- Mais de 120 mil pessoas já não são consideradas desempregadas porque desistiram de procurar emprego e centenas de milhares porque se viram forçadas a emigrar.
- Entre aqueles que conseguem ter um emprego, aumenta continuamente a precariedade, enquanto o poder de compra dos salários se vai erodindo.
- Com as alterações sucessivas das leis laborais, cada vez mais pessoas estão sujeitas a horários de trabalho incompatíveis com a vida familiar e a realização pessoal, sob a chantagem crescente do despedimento em versão simplex.
- O tecido produtivo também não sai ileso desta crise.
- O crédito malparado das empresas atingiu em Maio o valor mais elevado dos últimos 15 anos, afectando mesmo as empresas mais dinâmicas.
- O investimento empresarial recuou para níveis da década de oitenta, pondo em risco a capacidade de criação de riqueza no futuro.
- O colapso do Grupo Espírito Santo – cuja dimensão e consequências ainda estamos longe de conhecer – veio revelar-nos a fragilidade do sistema financeiro português.
- Estamos, pois, longe da retoma que o FMI, o Banco Central Europeu, o Banco de Portugal, a Comissão Europeia e o actual Governo insistem em decretar.
O risco que enfrentamos hoje é o prolongamento, por vários anos, da degradação social e económica do nosso país
- Portugal enfrenta uma dívida pública e uma dívida externa historicamente elevadas, que restringem fortemente as possibilidades de desenvolvimento do país.
- No passado, economias em circunstâncias comparáveis só conseguiram ultrapassar a crise reestruturando as suas dívidas e conduzindo políticas económicas favoráveis ao crescimento.
- Mas esta não é, como sabemos, a opção do actual governo. A coligação PSD/CDS propõe-se lidar com as elevadas dívidas pública e externa de Portugal prosseguindo nos próximos anos a mesma lógica de austeridade adoptada até aqui.
- Como consta do Documento de Estratégia Orçamental para 2014-2018, recentemente aprovado, a coligação de direita propõe-se forçar a existência persistente de saldos orçamentais nunca anteriormente alcançados pelo Estado português e apenas pontualmente verificados noutros países em situações semelhantes.
- Ao mesmo tempo, a coligação PSD/CDS pretende equilibrar as contas externas portuguesas através da repressão do consumo e do investimento e da redução dos salários.
- O resultado desta estratégia, se fosse implementada, seria um prolongamento por muitos anos da destruição de emprego e da emigração forçada, de um crescimento económico anémico, da perda de poder de compra dos salários e pensões, do desmantelamento progressivo do Estado Social e da redução dos direitos sociais e laborais.
- Ou seja: a estratégia que a coligação PSD/CDS se propõe prosseguir assenta na ideia de que será possível reduzir os desequilíbrios orçamental e externo do país apostando numa sociedade cada vez mais pobre e mais desigual.
- No entanto, esta estratégia não assegura nem a sustentabilidade da dívida pública, nem a redução da dívida externa. Só com base em hipóteses irrealistas se pode antecipar que uma redução sustentável dos desequilíbrios macroeconómicos do país se obtém através de um regime de austeridade permanente.
- Para a direita portuguesa pouco importa se a estratégia prevista é ou não realista. Na perspectiva do actual governo e dos interesses que ele representa, a crise em que vivemos constitui uma oportunidade singular para imporem ao país o modelo de sociedade que sempre ambicionaram, mas que nunca conseguiram fazer vingar em condições de funcionamento normal da democracia.
É importante percebermos que a situação actual nos impõe escolhas difíceis
- Os objectivos estabelecidos no Documento de Estratégia Orçamental para 2014-2018 não constituem apenas uma opção deste governo.
- Na verdade, aquele documento não faz mais do que identificar o nível de austeridade que o próximo governo irá impor ao país se acatar o que está previsto no Tratado Orçamental e na ausência de uma reestruturação significativa da dívida pública.
- Usando a linguagem do Banco de Portugal, “Não obstante o esforço de consolidação orçamental nos últimos três anos, o ajustamento das contas públicas ainda não está concluído. (…) As estimativas obtidas [continuo a citar] apontam para a necessidade de um ajustamento adicional da ordem de quatro pontos percentuais do PIB até 2019 [ou seja, quase 7 mil M€], o que corresponde a cerca de metade do esforço orçamental no período 2011-2013”.
- E este é o cenário optimista, aquele que assume que a economia Portuguesa – devastada como está, endividada como está, sem investimento, sem sectores avançados, tendo destruindo competências através do desemprego de longa duração, perdendo quadros qualificados para a emigração – conseguirá crescer nos próximos anos a ritmos que não se registam desde o século passado.
- Sejamos claros: qualquer governo que insista em seguir à letra as regras orçamentais actualmente em vigor na UE e que insista em não questionar os termos dos compromissos assumidos com os credores, estará na prática a comprometer-se com o desmantelamento progressivo do Estado Social e com o prolongamento da crise.
- Um governo que esteja empenhado em preservar os elementos fundamentais de uma sociedade decente em Portugal, tem de estar preparado para desencadear o processo de renegociação da dívida pública e de revisão das regras orçamentais em vigor na UE.
- Esse governo tem também de estar disposto a incumprir as regras vigentes na UE, caso tal venha a revelar-se necessário, tendo em vista a libertação de recursos para a preservação dos serviços públicos essenciais e para a condução de políticas favoráveis à criação de emprego.
- Com a noção dos riscos e dos constrangimentos que enfrentamos. Com uma preocupação permanente com a gestão responsável do aparelho de Estado, dos serviços públicos e do sistema fiscal.
- Precisamos de um governo que se empenhe em assegurar a sustentabilidade a prazo das contas públicas, não porque aceite como inevitável a destruição de um Estado Social universal e solidário, mas porque está decidido a lutar por ele.
É por isto que é urgente uma postura de compromisso e de determinação
- Há quem simplesmente aceite como irreversível o retrocesso civilizacional a que as lideranças europeias e o actual governo parecem querer condenar-nos.
- Outros optam pela estratégia da avestruz: falam o mínimo possível das dificuldades que enfrentamos e esperaram que instâncias superiores resolvam os problemas que são nossos.
- Outros ainda limitam-se a reconhecer e denunciar os constrangimentos, assumindo a sua impotência para mudar o presente. E não é para menos: o presente é mesmo difícil de mudar.
- Num contexto marcado por constrangimentos tão fortes, assumir as dificuldades que temos pela frente sem desistir de as enfrentar é a atitude mais difícil.
- Mas nós não temos o direito de desistir. É para isto que aqui estamos. Disponíveis para os compromissos que permitam estancar e reverter a delapidação do bem-comum. Determinados em fazer do exercício do poder democrático mais do que uma mera alternância entre quem aceita que a história é sempre feita por outros.
- Em momentos como o actual é preciso recuperar as palavras escritas por Scott Fitzgerald nos catastróficos anos 30 do século passado e afirmar:
“Temos de ser capazes de reconhecer que a situação é desesperada e ainda assim estar determinados em transformá-la.”
- Se é este o objectivo, então vale a pena arriscar.