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“É urgente uma postura de compromisso e de determinação” – Ricardo Paes Mamede

Intervenção do Ricardo Paes Mamede na sessão pública “Por uma Governação Decente”

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Vivemos uma situação muito difícil e de pouco serve ignorá-lo

  • Quase 800 mil portugueses encontram-se oficialmente desempregados, 500 mil dos quais há mais de 1 ano e, destes, 300 mil há mais de 2 anos.
  • Mais de 120 mil pessoas já não são consideradas desempregadas porque desistiram de procurar emprego e centenas de milhares porque se viram forçadas a emigrar.
  • Entre aqueles que conseguem ter um emprego, aumenta continuamente a precariedade, enquanto o poder de compra dos salários se vai erodindo.
  • Com as alterações sucessivas das leis laborais, cada vez mais pessoas estão sujeitas a horários de trabalho incompatíveis com a vida familiar e a realização pessoal, sob a chantagem crescente do despedimento em versão simplex.
  • O tecido produtivo também não sai ileso desta crise.
  • O crédito malparado das empresas atingiu em Maio o valor mais elevado dos últimos 15 anos, afectando mesmo as empresas mais dinâmicas.
  • O investimento empresarial recuou para níveis da década de oitenta, pondo em risco a capacidade de criação de riqueza no futuro.
  • O colapso do Grupo Espírito Santo – cuja dimensão e consequências ainda estamos longe de conhecer – veio revelar-nos a fragilidade do sistema financeiro português.
  • Estamos, pois, longe da retoma que o FMI, o Banco Central Europeu, o Banco de Portugal, a Comissão Europeia e o actual Governo insistem em decretar.

O risco que enfrentamos hoje é o prolongamento, por vários anos, da degradação social e económica do nosso país

  • Portugal enfrenta uma dívida pública e uma dívida externa historicamente elevadas, que restringem fortemente as possibilidades de desenvolvimento do país.
  • No passado, economias em circunstâncias comparáveis só conseguiram ultrapassar a crise reestruturando as suas dívidas e conduzindo políticas económicas favoráveis ao crescimento.
  • Mas esta não é, como sabemos, a opção do actual governo. A coligação PSD/CDS propõe-se lidar com as elevadas dívidas pública e externa de Portugal prosseguindo nos próximos anos a mesma lógica de austeridade adoptada até aqui.
  • Como consta do Documento de Estratégia Orçamental para 2014-2018, recentemente aprovado, a coligação de direita propõe-se forçar a existência persistente de saldos orçamentais nunca anteriormente alcançados pelo Estado português e apenas pontualmente verificados noutros países em situações semelhantes.
  • Ao mesmo tempo, a coligação PSD/CDS pretende equilibrar as contas externas portuguesas através da repressão do consumo e do investimento e da redução dos salários.
  • O resultado desta estratégia, se fosse implementada, seria um prolongamento por muitos anos da destruição de emprego e da emigração forçada, de um crescimento económico anémico, da perda de poder de compra dos salários e pensões, do desmantelamento progressivo do Estado Social e da redução dos direitos sociais e laborais.
  • Ou seja: a estratégia que a coligação PSD/CDS se propõe prosseguir assenta na ideia de que será possível reduzir os desequilíbrios orçamental e externo do país apostando numa sociedade cada vez mais pobre e mais desigual.
  • No entanto, esta estratégia não assegura nem a sustentabilidade da dívida pública, nem a redução da dívida externa. Só com base em hipóteses irrealistas se pode antecipar que uma redução sustentável dos desequilíbrios macroeconómicos do país se obtém através de um regime de austeridade permanente.
  • Para a direita portuguesa pouco importa se a estratégia prevista é ou não realista. Na perspectiva do actual governo e dos interesses que ele representa, a crise em que vivemos constitui uma oportunidade singular para imporem ao país o modelo de sociedade que sempre ambicionaram, mas que nunca conseguiram fazer vingar em condições de funcionamento normal da democracia.

É importante percebermos que a situação actual nos impõe escolhas difíceis

  • Os objectivos estabelecidos no Documento de Estratégia Orçamental para 2014-2018 não constituem apenas uma opção deste governo.
  • Na verdade, aquele documento não faz mais do que identificar o nível de austeridade que o próximo governo irá impor ao país se acatar o que está previsto no Tratado Orçamental e na ausência de uma reestruturação significativa da dívida pública.
  • Usando a linguagem do Banco de Portugal, “Não obstante o esforço de consolidação orçamental nos últimos três anos, o ajustamento das contas públicas ainda não está concluído. (…) As estimativas obtidas [continuo a citar] apontam para a necessidade de um ajustamento adicional da ordem de quatro pontos percentuais do PIB até 2019 [ou seja, quase 7 mil M€], o que corresponde a cerca de metade do esforço orçamental no período 2011-2013”.
  • E este é o cenário optimista, aquele que assume que a economia Portuguesa – devastada como está, endividada como está, sem investimento, sem sectores avançados, tendo destruindo competências através do desemprego de longa duração, perdendo quadros qualificados para a emigração – conseguirá crescer nos próximos anos a ritmos que não se registam desde o século passado.
  • Sejamos claros: qualquer governo que insista em seguir à letra as regras orçamentais actualmente em vigor na UE e que insista em não questionar os termos dos compromissos assumidos com os credores, estará na prática a comprometer-se com o desmantelamento progressivo do Estado Social e com o prolongamento da crise.
  • Um governo que esteja empenhado em preservar os elementos fundamentais de uma sociedade decente em Portugal, tem de estar preparado para desencadear o processo de renegociação da dívida pública e de revisão das regras orçamentais em vigor na UE.
  • Esse governo tem também de estar disposto a incumprir as regras vigentes na UE, caso tal venha a revelar-se necessário, tendo em vista a libertação de recursos para a preservação dos serviços públicos essenciais e para a condução de políticas favoráveis à criação de emprego.
  • Com a noção dos riscos e dos constrangimentos que enfrentamos. Com uma preocupação permanente com a gestão responsável do aparelho de Estado, dos serviços públicos e do sistema fiscal.
  • Precisamos de um governo que se empenhe em assegurar a sustentabilidade a prazo das contas públicas, não porque aceite como inevitável a destruição de um Estado Social universal e solidário, mas porque está decidido a lutar por ele.

É por isto que é urgente uma postura de compromisso e de determinação

  • Há quem simplesmente aceite como irreversível o retrocesso civilizacional a que as lideranças europeias e o actual governo parecem querer condenar-nos.
  • Outros optam pela estratégia da avestruz: falam o mínimo possível das dificuldades que enfrentamos e esperaram que instâncias superiores resolvam os problemas que são nossos.
  • Outros ainda limitam-se a reconhecer e denunciar os constrangimentos, assumindo a sua impotência para mudar o presente. E não é para menos: o presente é mesmo difícil de mudar.
  • Num contexto marcado por constrangimentos tão fortes, assumir as dificuldades que temos pela frente sem desistir de as enfrentar é a atitude mais difícil.
  • Mas nós não temos o direito de desistir. É para isto que aqui estamos. Disponíveis para os compromissos que permitam estancar e reverter a delapidação do bem-comum. Determinados em fazer do exercício do poder democrático mais do que uma mera alternância entre quem aceita que a história é sempre feita por outros.
  • Em momentos como o actual é preciso recuperar as palavras escritas por Scott Fitzgerald nos catastróficos anos 30 do século passado e afirmar:

“Temos de ser capazes de reconhecer que a situação é desesperada e ainda assim estar determinados em transformá-la.”

  • Se é este o objectivo, então vale a pena arriscar.
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“Queremos ser parte da solução” – Daniel Oliveira

Intervenção do Daniel Oliveira na sessão pública “Por uma Governação Decente”

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“Há quem diga, da vontade que temos em responder à rápida decadência deste país, que estamos com demasiada pressa.

Todos os dias saem deste país 270 pessoas. Sim, estou com pressa. Dessas, 200 têm menos de 35 anos e muitas delas qualificadas. Claro que temos pressa. Um em cada cinco dos portugueses estão desempregados ou aquilo a que o governo chama de “ocupados”. Claro que tenho pressa. Todos os diais, 28 famílias e 35 empresas declaram falência. Tenho pressa. Um fanático faz a escola pública ir regressando ao tempo em que ensinava a ler, a contar e a não pensar. Por isso tenho pressa. Os melhores médicos vão abandonando o Serviço Nacional de Saúde para trabalhar no privado, com o risco dos hospitais públicos se transformarem num refugo para quem não tem dinheiro. Temos muita pressa. Cada vez menos gente confia na segurança social para a sua velhice. Temos pressa. O sistema fiscal produz cada vez mais injustiças, rebentando com o contrato social que sustenta a nossa democracia. E nós temos pressa.

Mas a principal razão pela qual temos pressa é que o País pode habituar-se a viver assim.

Mas esta urgência, esta pressa, não impede de ter horizontes.

O nosso horizonte é uma saúde pública, uma escola pública, transportes públicos, sistema de pensões públicos (não devemos ter vergonha da palavra “público”), de qualidade e garantidos essencialmente pelo Estado de forma sustentada. São políticas públicas que promovam a coesão social e territorial. É o pleno emprego como objetivo central da economia. 15% de desemprego (18%, se falarmos de desemprego real) não é um problema. É um país que falhou em tudo. São leis laborais que desequilibrem a balança para o lado mais frágil. São políticas fiscais progressivas, que para além de cobrirem as despesas do Estado cumpram a função de redistribuir a riqueza. É aí, nos impostos, que isso se faz, recusando a demagogia fácil da dupla tributação. É um poder político realmente independente do poder financeiro, acabando com este deprimente saltitar do ministério para o banco, do banco para ministério, da autarquia para a empresa de construção civil, da construtura para o Ministério. E são políticas económicas que sustentem este país que desejamos.

Mas para lutar por isto não basta desejar muito ou apenas resistir. É preciso caminhar. E sobretudo, é preciso travar já o recuo civilizacional a que estamos a assistir. Travar já e reverter a destruição do Serviço Nacional de Saúde, da Escola Pública, dos transportes e do sistema de pensões e reformas. Travar já e reverter a perda de rendimentos dos trabalhadores. Travar já e reverter o desemprego e o seu parente próximo – o trabalho precário. Travar já e reverter a desregulação das relações laborais que está a transformar o mercado de trabalho na lei da selva. Travar já e reverter a emigração. Mas acima de tudo, não mentir mais às pessoas. Não é possível defender o que queremos defender, pagar a dívida tal e qual ela está e cumprir as metas do tratado orçamental. É preciso fazer escolhas difíceis.

Não queremos recuar um pouco menos do que a direita nos propõe. Queremos travar já e reverter este recuo. E para, lamento dizê-lo, isso já vamos chegar tarde. Não é hora para acumular forças e esperar por melhores dias. é hora de agir.

E para agira é necessário construir um compromisso entre as forças que queiram defender o Estado Social. Os compromissos negoceiam-se. E só se negoceia com quem pensa de forma diferente de nossa.

Há quem diga, ainda assim, que quem está disponível para o compromisso quer apenas o mal menor. Do bem maior, pelo menos para quem é crente, trata a religião. A política sempre tratou do mal menor. Se o mundo fosse como eu o sonho, se tivéssemos conseguido o bem melhor, não precisávamos de impostos para redistribuir uma riqueza que estaria bem distribuída. Não precisávamos de leis laborais para impedir o abuso. Nem de subsídio de desemprego, pois o desemprego não existiria. Talvez nem precisássemos de Escola Pública ou Serviço Nacional de Saúde. Este foi o mal menor pelo qual muitas gerações lutaram. É este o mal menor que queremos defender.

Sei que o compromisso não será nada fácil. Não ignoro as enormes responsabilidades do PS no estado em que estamos. Não ignoro as enormes responsabilidades dos partidos socialistas europeus pelo estado em que está a Europa. Não ignoro as costumeiras cedências dos governantes do centro-esquerda à agenda oposta à que deviam defender. Não ignoro as promiscuidades com interesses privados, tão evidente, quer no PS quer no PSD, no BES. E tenho observado namoro indecoroso entre António Costa e Rui Rio, que só prova ainda mais a urgência da nossa ação. Mas também não ignoro que o mais provável, se nada fizermos, é que tudo continue na mesma. Na realidade, não ficará na mesma. O país que continuará a esvaziar-se de pessoas, de futuro e de esperança.

E para travar e reverter esta decadência nacional que é necessária uma plataforma política eleitoral dos que, à esquerda de quem tem governado, estão dispostos a dar a uma resposta ao apelo de urgência que ouvimos em todo o lado. Estão dispostos a dizer: sim, queremos ser parte da solução. Não será grande consolo, mas o que posso dizer agora é que contam comigo. Como todos vocês, estou com pressa”.

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Guião Político para as Europeias 2014

Um guião político para as Europeias de 2014 de Alexandre Abreu, João Rodrigues e Nuno Teles

“Um guião para um debate informado

O guião político para as Europeias de 2014, escrito pelo Alexandre Abreu, pelo João Rodrigues e por mim, pretende intervir no debate sobre a questão nacional, socioeconómica e política, mais importante – a europeia – e sobre a estratégia da esquerda que não desiste para as eleições do próximo ano. Sendo escrito por quem tem e toma partido, intervém numa discussão ampla para convergências tão amplas quanto possível. Ideias centrais: a campanha de uma força de esquerda que queira ser portadora de um projeto de esperança para os que aqui vivem tem de saber articular três grandes linhas – desobediência e recusa das perdas passadas e futuras de soberania, renegociação da dívida e exigência de saída do Euro…” (Nuno Teles, in Ladrões de bicicletas, 25/11/2013)

 

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Miguel

Nada tenho a escrever sobre política. O Miguel não me perdoaria isto. Deixar passar uma semana sem me entregar ao que sei fazer. As duas coisas a que me dediquei na vida – a política e o jornalismo – fiz ao lado dele, com ele. E para ele, por pior que tudo corresse, a escrita e a política não esperavam pelos nossos estados de alma. Nessa matéria, era implacável. Mas tinha, apesar disso, uma fome de vida como nunca vi em ninguém. E desconfiava de quem só vivia para grandes causas. Como podemos nós compreender o que devemos fazer pelos outros se nada sabemos deles? Como podemos nós lutar pelo outro se ele não for mais do que uma abstração? O Miguel gostava de pessoas antes de gostar de uma ideia.

Não, não me preparo para um panegírico. Panegíricos fazem-se a heróis. E o Miguel não era um herói. Não era uma estátua. Sim, foi detido com 15 anos pela PIDE. Sim, foi militante comunista quando era difícil. Sim, viveu sempre dividido entre a lealdade à sua “tribo” e o imperativo de não defender aquilo em que não podia acreditar. Mas, da sua coragem, o que mais importava era o desplante. Ter organizado os primeiros concertos em Lisboa quando isto era um deserto. Ter lançado um jornal e uma revista de esquerda quando isso era impensável. Ter-se mudado para o Alentejo e para a serra algarvia para trabalhar em desenvolvimento local quando o seu “estatuto” não o obrigaria. Ter voltado ao jornalismo, várias vezes, para nos oferecer maravilhosos documentários e livros. Ser, e isso era uma das nossas muitas cumplicidades, um incurável viajante. Os seus olhos terem continuado, até ao último dia, a brilhar com cada coisa nova que descobria, com cada coisa velha que defendia. Dos seus míticos ataques de fúria passarem com a mesma inesperada rapidez com que chegavam. Com as mulheres, com os lugares, com a política, com o trabalho, com tudo, o Miguel era intenso.

O Miguel era irremediavelmente humano em todos os seus defeitos e qualidade. Não faço um panegírico porque o Miguel não era apenas meu camarada. Não era sobretudo meu camarada. Era meu amigo. Com fraquezas, erros, injustiças. Como com todos os amigos, que não o são apenas por hábito, claro que me zanguei tantas vezes com o Miguel como ele se terá zangado comigo. Fizemos sempre as pazes sem uma palavra, apenas voltando porque tem de ser. O tempo permite que a amizade viva com o que não precisa de ser dito. E ao fim de 22 anos de um imenso carinho, mais de metade da minha vida, onde em cada momento me aparece o seu rosto, a sua voz, o seu riso estranho e o seu desvairado otimismo, os seus defeitos passaram a ser tão indispensáveis como as suas qualidades. Parte de mim.

O Miguel morreu (custa escrever) indecentemente cedo. Cedo demais para toda a energia que tinha e que, até ao último minuto, nunca o abandonou. Cedo demais para todos, e éramos muitos, que dele dependiam, como se depende de uma casa que, mesmo com infiltrações, sempre foi a nossa. Mas uma coisa é certa: o Miguel teve uma vida cheia. E encheu as dos outros. E como ele não me perdoaria que não falasse de política, deixou a nossa muitíssimo mais pobre. Há pouca gente com a sua ousadia. Na política, mundo repleto de bonecos insufláveis, não há quase ninguém. Sim, talvez o País aguente todas as perdas. Talvez a esquerda supere esta. Para mim, para todos os seus amigos, é que é mais difícil tapar este buraco.

Daniel Oliveira in Jornal Expresso 28/04/2012

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Um adeus sentido e combatente

Hesitei um pedaço antes de escrever algumas linhas sobre o desaparecimento triste e prematuro do Miguel Portas. Por diversos motivos. Desde logo, porque muitas outras pessoas, mais próximas dele, mais e melhor conhecedoras da sua jornada de vida, escreveram de maneira informada sobre episódios, dificuldades, alegrias e projetos partilhados. Fizeram-no, em diversos casos, de forma muito sábia, justa, comovida e magnífica. Jamais o poderia ou saberia eu fazer com idênticos atributos. Hesitei depois porque falei com o Miguel apenas uma meia dúzia de vezes desde que o conheci, tardiamente, no ano 2000. O Bloco de Esquerda nascera há pouco e na altura sentia-me suficientemente perto para participar como orador numa iniciativa pública. Recordo que sendo o penúltimo a falar me vi interrompido pela chegada de uma equipa de televisão com pouco tempo para gravar o discurso principal, da responsabilidade do próprio Miguel. Fiquei, claro, um tanto irritado com a situação, mas horas depois, já no comboio, recebi um telefonema caloroso e gentil, explicando detalhadamente o sucedido e pedindo um milhão de desculpas. Gesto definidor de um modo de agir raro no universo, tantas vezes brutal e cheio de prioridades trocadas, do ativismo profissional de todos os quadrantes. Mas hesitei ainda porque não queria, nem quero, servir-me de um acontecimento tão infeliz para travar o meu próprio combate político. Não posso, no entanto, deixar de recordar, uma vez que nestas horas tem permanecido omisso nos obituários, a luta do Miguel que conheci contra o sectarismo de todos os matizes e pela ampliação da crítica e da autocrítica dentro da «esquerda da esquerda». Opção difícil pela qual se bateu, mesmo até ao final do caminho, com perseverança e equilíbrio, por considerá-la a única forma de somar forças e ideais para o combate, cada vez mais urgente, cada vez mais imprescindível, por um país melhor e por um mundo mais justo. E do novelo de tantas hesitações resultou este acanhado post, que não passa de um adeus sentido e combatente.

Rui Bebiano, publicado em aterceiranoite.org

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Isto irá

Há quinze dias a crónica não saiu. Não fui capaz de a escrever. Eu tinha sofrido uma grande perda e não quis receber uma avalanche de mensagens. Recebi apenas algumas. Uma delas era do Miguel Portas: “internado em Antuérpia”, dizia, desejava-me força naquele momento difícil. Nestas duas semanas, enviei-lhe duas mensagens, desejando-lhe força também, para os tratamentos. “Brigado”, respondeu ele, “isto irá”.

Hoje a crónica sai, não sei se em condições para ser lida, peço desculpa por isso. É 25 de abril, e o Miguel Portas morreu ontem. É duro. Daqui a uma semana será 1º de maio. O dia de anos do Miguel Portas, data que o enchia de vaidade. Isto é mais do que duro. É cruel.

Foi cruel morrer assim o Miguel Portas, tão dolorosamente. Mas ele não se zangou com a vida. Logo o Miguel, que tantas vezes na vida se zangou sem razão, não se zangou com a vida, mesmo quando teve toda a razão para isso. Mas ele só podia gostar muito da vida. Tanto que nunca acreditou que ela lhe pudesse fazer esta desfeita. Há mesmo pessoas em que o gostar muito da vida está na raiz de tudo.

Isto irá, Miguel. Hoje é 25 de abril. É dia de descer a Avenida da Liberdade. Vão lá muitos amigos, de cravo na mão, camaradas teus, namoradas tuas, gente com quem te zangaste, gente com quem te reconciliaste, gente com quem fizeste política, e jornalismo, e amizade, e com quem desfizeste também. Para qual das coisas tinhas mais talento? Também isso discutiremos ao descer a Avenida da Liberdade, mesmo os que não puderem descer a Avenida; lembraremos os jornais, e a política, e as amizades.

Isto irá. Daqui a uma semana é 1º de maio. Ser-te-á prestada homenagem, quando já estivermos mais repostos. Os teus amigos farão outra coisa: festejarão o teu aniversário. Mesmo aqueles que andaram à bulha contigo. Todos sentem a tua falta. Até de andar à bulha contigo. Falarão das coisas que fizeste, lembrarão como entraste na vida deles, e não esquecerão nada, das coisas mais importantes àquelas que não têm importância nenhuma. Como lhes arranjaste um emprego. Como o jornal foi à falência. Como fizeste um partido novo.

E, sabes, Miguel? Isto irá. Aprenderemos finalmente, talvez não seja já para amanhã, mas aprenderemos. A fazer as coisas de outra maneira. A ser camaradas. A respeitar as diferenças. A juntar forças, mesmo. Tu, que nunca foste sectário, vais gostar de ver. Mas como eras taticista, vais ficar surpreendido.

Isto irá, finalmente. Faremos deste um país melhor. Teremos de ser muito melhores para o conseguir fazer, é claro. Mas isto irá. As coisas estão difíceis agora. Mas um dia vamos reconstruir o que agora está sendo destruído. Nascerão as novas escolas, e teatros, e serão reconstruídos os prédios velhos.

E haverá mais. Haverá viagens, Miguel, em que se arrancará logo de madrugada. E piadas contadas em várias línguas, francês desenrascado, italiano macarrónico, inglês acabado de aprender, uma ou duas palavras em árabe. Isto irá. Hão de cair mais uns tantos muros, vais ver. E vai haver jogos de futebol contigo como guarda-redes. E vão aparecer uns jornais e umas revistas novas, com um pessoal novo, talentoso, que havemos de descobrir. Vamos ter umas boas ideias. E, tal como garantiste tanta vez, vamos dar a volta a isto. Vamos dar a volta a tudo. Nem sempre acreditei, é certo. Mas isto irá.

Rui Tavares, publicado em ruitavares.net

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Consegue-se viver sem esperança?

Diz-me, sabes viver sem esperança? Claro que não. Se soubéssemos, como é que vivíamos? Olha para nós, tenta ver-nos de fora. Já imaginaste? Vivemos a lutar por coisas e, convenhamos, a maioria não sonha os mesmos sonhos que nós. E nós? Acreditamos que um dia talvez e continuamos. No fundo, de quando em vez é-nos momentaneamente atraiçoada a esperança por não nos deixarem experimentar o que seria a vida se os nossos sonhos fossem vividos. Eu gostava de um dia poder pôr em prática o que defendemos, com todos os riscos e sem nenhum dos medos. Tu não? Tenho pena de nunca ter podido ‘sujar as mãos’, mas já lá andámos perto muitas vezes. Foram mais as coisas que mudámos do que pensamos e a traição não é coisa que caiba bem no coração. Passa e volta a esperança.

 O que é que ficou por dizer? Nada ficou por dizer. Tudo o que era para ser dito, ficou dito. Lembra-te disso, sempre. Se as palavras não te saem porque coladas à garganta ou amarradas no peito é porque não quiseram sair. Engolem-se, transformam-se em gestos, desaparecem. Às vezes o problema são as palavras a mais e até com essas se aprende a lidar. É a vida a deixar-se viver.

 

E as mágoas? Enterram-se. Não servem de nada, consomem tudo. Devemos evitar o ressentimento, o ódio, as vaidades reprimidas. Do passado devemos usar o saber e o que dele aprendemos de útil para a frente. Útil? Sim, o que pode ser usado. E ressentimentos? Não consigo entendê-los. E sabes bem que a minha falta de memória é quase uma lenda.

 Ainda é tão cedo, fica mais um bocado, sim? Não é cedo, não é tarde. Foi o tempo que o tempo permitiu. Foram muitas as vidas dentro desta vida e foram quase sempre muito boas. Havia ainda projectos, há sempre projectos para fazer. Sabes bem como estamos sempre a fazer contas de multiplicar. Continua com os teus, abre campo ao teu experimentalismo, consegues sempre. Sempre? Pronto, quase sempre.

 O que sentes agora? Paz. Muita paz.

E agora, Miguel? É simples: voa. Voem.

 Marisa Matias in Diário das Beiras 28/04/2012

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O princípio da Esperança

Na minha juventude usávamos uma frase do Gramsci com que se pretendia expressar a nossa forma de ver o mundo e as adversidades do dia-a-dia. Tínhamos “o pessimismo da razão e optimismo do coração”. O Miguel foi abençoado com uma razão em que o coração e um imenso optimismo mandavam. Para ele era sempre possível tomar os céus de assalto e exigir o impossível, para me manter na linguagem de uma tribo diversa e particular de que ele era um dos expoentes. As vidas não têm resumo. Mas alguns gestos condensam uma existência.

Em 1982, o Miguel imaginou uma cidade num deserto. Durante mais de uma semana, milhares de jovens acampariam na praia do Carvalhal, na Comporta, em Tróia. Nada havia lá, para além do mar e dos mosquitos. Menos de um ano depois, sucediam-se debates, concertos e festas sob o lema “Dêem uma oportunidade à paz”. Neste debates participavam pessoas com opiniões plurais e diversas. Mais de dez mil concentraram-se na cidade de Setúbal contra a instalação dos mísseis nucleares dos EUA em território europeu. Um ano antes, ninguém julgava possível a construção de uma verdadeira cidade no meio de uma praia deserta. Mas o Miguel tinha a capacidade de nos fazer sonhar. Inspirava-nos a transcender a nossa vida e a mudar a realidade. E, de facto, centenas de pessoas mobilizaram-se para que, em Junho de 1983, aquilo que alguém tinha imaginado se transformasse numa vontade colectiva e numa realização de muitos.

Alguns dos seus amigos diziam a brincar que o Miguel tinha a capacidade de vender frigoríficos aos esquimós no Pólo Norte. Só assim se explica que com a ajuda dos seus amigos Dias da Cunha e Jorge Sampaio tenha falado com os banqueiros Jardim Gonçalves, José Roquette, Artur Santos Silva e Rui Vilar de que o país precisava de um semanário de esquerda e que eles deviam investir nisso, tendo convencido parte deles. Dessa vontade e capacidade nasceu o semanário “Já”, que juntava jornalistas e activistas de esquerda provenientes da revista “Contraste”, que o Miguel tinha dirigido, e dos “Cadernos Politika”, uma revista da Juventude Comunista Portuguesa. Durante mais de um ano, aquilo que parecia irrealizável foi feito com o trabalho de muitos e com umas dezenas de milhares de contos de uns poucos.

Tinha um sorriso caloroso e uma generosidade contagiante. No meio do trabalho era possível os amigos zangarem-se com ele, mas era impossível ficarmos muito tempo furiosos. Era o Miguel e conquistava-nos com um novo sonho, uma nova quimera, uma nova ideia impossível. A verdade é que, nas suas mãos, as coisas pareciam fáceis.

Quem imaginaria que era possível fazer o Bloco de Esquerda?

Na passada quinta-feira tentei falar com ele, as notícias não eram boas. Respondeu-me por SMS, com o humor do costume: “A tua sorte é que não consigo falar. Novidades?” Não abordámos o maldito cancro. Informei-o de que a polícia de intervenção tinha cercado e isolado a escola da Fontinha e que uma pessoa nossa amiga estava lá dentro. Escreveu-me “manda-lhe um abraço de solidariedade”. Apesar de se saber sem tempo, escreveu um dos seus últimos comentários no facebook: “A Es.Col.A da Fontinha, que tem um trabalho mais do que meritório com a população do bairro, está a ser despejada à bruta por uma cruzada de políticos idiotas. Que todas as boas vontades se juntem contra a estupidez. Já.”

Certamente que se orgulharia dos milhares de jovens que no dia da liberdade, contra “a tolerância zero ao 25 de Abril” de um intendente da PSP, a retomaram, e diria com aquela voz rouca e calorosa: “É a nossa gente.” E rir-se-ia do autarca portuense que, no dia seguinte, mandou roubar as sanitas e as canalizações para que as populações não pudessem imaginar fazer qualquer coisa daquela escola. Miguel Portas sempre foi um militante político, mas o seu combate foi arranjar-nos formas de podermos concretizar os nossos sonhos e correr com a gente que se dedica a uma política de sarjetas.

Nuno Ramos de Almeida in Jornal i 27/04/2012

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Miguel

Conheci o Miguel, sardento, louro, espigado, irrequieto e tinha 13 anos. Foi numa assembleia de estudantes do ensino secundário, que se realizou na cantina de Económicas, o ISEG de hoje. Discussões acaloradas, heroísmo à flor da pele, a ditadura e a guerra pela frente – nessa altura, o futuro era magnífico. E foi. O 25 de Abril e os melhores anos da nossa vida, como dizia o José Afonso.

Economista por empréstimo, foi sempre jornalista e político por vocação. Com a vertigem dos anos finais da ditadura, entrou na UEC e foi escolhido para a sua comissão central em 1974. Do PCP sairia em 1989, quinze anos depois e sem mágoas, sempre respeitador dessa vida militante. Entretanto, foi animador cultural na Câmara de Ourique e na serra algarvia. Aprendeu o trabalho local, a importância da cultura e da comunicação popular. Tornou-se jornalista, lançou a revista “Contraste” em 1986 e fez dela um ícone da cultura à esquerda. Foi depois jornalista do “Expresso”, a partir de 1988, e editor internacional da sua revista até 1994. Fez a cobertura da campanha eleitoral do PSR em 1991, e lembro-me de como se divertia com a minha ingenuidade sobre o que seria ser deputado. Tinha razão.

A partir de 1995, fez aquilo de que mais gostava, criou um jornal em que podia agir com as suas próprias escolhas. O “Já” foi essa aventura, depois a “Vida Mundial”. Fez a cobertura da queda do regime da Roménia, onde sentiu o cheiro do 25 de Abril e os riscos do que aí vinha. Com jornalistas, amigos, gente de talento e de vontade, inventou jornalismo, fez actualidade, lutou pelas ideias, convidou opiniões. Que falta que faz um jornal como esses.

Escreveu três livros: “E o Resto é Paisagem” (2002), “No Labirinto”, sobre o Líbano (2006) e “Périplo”, sobre as histórias do Mediterrâneo, com Cláudio Torres (2006). Como sempre lembra o Inimigo Público, o suplemento satírico do Público, a sua profunda ligação ao Médio Oriente levava-o a interessar-se pela sua gastronomia, pelo cinema, pelas lendas, pelas histórias, pelos partidos, pelas guerras e pela paz. Tomou posição. Arriscou-se. Falou com todos. Atravessou o Líbano debaixo de bombardeamento israelitas. Defendeu energicamente o povo palestino. Juntou-se às vozes dos movimentos de paz em Israel.

Viveu a vida intensamente e com gosto. Foi dirigente do Bloco e eurodeputado até ao último momento. Incentivou-nos da cama do hospital. Combinou a sua viagem que faltava, à Birmânia, e que nunca fará. Despediu-se dos filhos.

Viveu connosco e nós vivemos com ele. Perdemo-lo e não o esquecemos. Um abraço, Miguel.

Francsico Louçã, publicado na página do facebook 

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O Bloco do Miguel

Escrever sobre o contributo de alguém que nos acabou de deixar não é com certeza uma tarefa fácil. E não o é ainda mais quando esse alguém é nada mais e nada menos do que o Miguel Portas, consensualmente reconhecido como uma das figuras mais marcantes da esquerda portuguesa dos últimos anos. De qualquer modo, parece-me fácil encontrar uma palavra para o definir: lucidez. Em quem lia, ouvia e acompanhava expectante as sua intervenções, a sua aguçada lucidez até feria.

Privei pouco com o Miguel. Mas tal não impede que sobre ele tivesse uma tremenda admiração. Via-se que tinha uma paixão imensa pelo mundo e pela sua diversidade. Por um mundo que não era plano, que estava em permanente mudança, repleto de contradições, incertezas e injustiças, mas no qual valia a pena viver. E viver para poder compreendê-lo, conhecê-lo e sobre ele conseguir intervir. E intervir à esquerda, sabendo que não se consegue mudá-lo do dia para a noite, mas procurando torná-lo mais livre, mais justo, um sítio muito melhor para todos os que cá estão.

Sendo o Bloco uma invejável confluência de várias visões, cada qual com inúmeras qualidades, julgo que ao Miguel Portas fica associada uma permanente vontade do partido se reinventar. De não cair em dogmatismos, de fugir da cristalização, encontrando sempre no debate e na contradição uma forma de se renovar e de melhor responder aos desafios de um mundo em constante mudança. O Miguel personalizava essa esquerda inconformada, pouco permeável a maniqueísmos na análise da realidade e ao mesmo tempo inabalável na vontade de fazer diferente. Uma esquerda sedenta de viver, sedenta de diversidade, com vontade incessante de ouvir vozes diferentes, visões e perspetivas diversas que lhe permitam questionar-se a si própria e assim melhor orientar a sua ação.

É um orgulho fazer parte e contribuir para este projeto político em que o Miguel tanto acreditou. E embora tendo a certeza que a sua política estava muito longe de se cingir ao universo partidário (seria extremamente redutor se assim fosse), é bom sentir no Bloco o seu importante contributo para esta esquerda arejada que não desiste de fazer o mundo melhor. Obrigado, Miguel, e até sempre.

João Ricardo Vasconcelos in esquerda.net 27/04/2012